Órgão de combate as secas criado para obras hídricas direcionou R$ 1,1 bilhão a ações fora de sua missão; contratos estão no centro de investigações por fraude, superfaturamento e atuação de organização criminosa
Uma auditoria da Controladoria-Geral da União constatou que o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) desviou sua função institucional entre 2021 e 2023 ao concentrar a maior parte dos recursos em pavimentação de vias e compra de máquinas agrícolas — áreas sem relação com sua atividade-fim. Do total de R$ 1,85 bilhão contratado no período, cerca de 60% foi destinado a obras e aquisições não previstas na missão legal do órgão, movimento impulsionado pelo avanço das emendas parlamentares e já alvo de operações da Polícia Federal.
>> Siga o canal do Jornal Local no WhatsApp

Os números levantados pela CGU mostram o desequilíbrio: somente em pavimentação foram aplicados R$ 748,8 milhões (40,4%), enquanto as obras essenciais do órgão, como barragens, adutoras e poços, somaram R$ 633,9 milhões (34,2%). Outros R$ 355,3 milhões (19,1%) financiaram máquinas agrícolas, tratores e equipamentos que, historicamente, não fazem parte do escopo do Dnocs.

A auditoria identificou que, na página institucional do órgão, multiplicam-se anúncios de pavimentações em municípios do Nordeste, muitas delas questionadas pela baixa qualidade ou execução incompleta. Parte desses contratos foi atingida pela Operação Overclean, deflagrada pela Polícia Federal no fim de 2024, que apura suspeitas de fraude em licitações, corrupção e subcontratações irregulares.
Na sexta-feira, uma nova investida da PF avançou sobre empresas e agentes públicos apontados como beneficiários de um esquema de superfaturamento, medições fraudulentas e obras inexistentes. O Supremo Tribunal Federal autorizou 11 mandados de busca e apreensão em investigação que mira uma possível organização criminosa instalada para manipular contratos provenientes de emendas parlamentares.
Segundo a CGU, quase todas as contratações irregulares foram abastecidas por emendas, principalmente do tipo RP2 — usadas politicamente para irrigar bases eleitorais. A prática, que começou a ganhar força há cinco anos, cresceu junto com a explosão das emendas no Orçamento da União, alterando o fluxo natural de decisões técnicas do órgão e provocando distorções na distribuição dos recursos.
O Tribunal de Contas da União classificou como “irregularidade grave” o direcionamento em massa para obras fora da missão institucional do Dnocs e recomendou a paralisação dos contratos até revisão completa dos procedimentos. A corte também avalia responsabilizações individuais de gestores e parlamentares envolvidos na alocação dos recursos.
Como as emendas reconfiguram o DNOCS
Levantamentos preliminares de auditores mostram que parte das obras de pavimentação foi viabilizada diretamente por parlamentares com forte base eleitoral em pequenos municípios do interior. Há indícios de que empresas contratadas aparecem repetidamente nos contratos e mantêm vínculos cruzados com prefeituras beneficiadas.
Outro ponto em análise é o papel de intermediários — assessores, consultores e operadores políticos — na definição das obras, muitas vezes sem participação dos setores técnicos do órgão. A CGU tenta mapear se esses intermediários atuaram para direcionar licitações, favorecendo grupos empresariais específicos.
Auditoria aponta falta de estudos
Enquanto o Dnocs argumenta que as obras atendem demandas municipais, a auditoria aponta falta de justificativa técnica e inexistência de estudos que sustentem a relevância das pavimentações no combate aos efeitos da seca. A divergência abre espaço para questionamentos sobre uso eleitoral dos recursos.




