Acordo de R$ 108 milhões para instalar wi-fi em áreas pobres expõe repasses suspeitos, terceirização irregular e beneficiamento de empresa do acusado
A prisão de Alex Leandro Bispo dos Santos, acusado de espancar a esposa instantes antes de ela cair do 10º andar de um prédio na zona sul de São Paulo, trouxe à tona um contrato de R$ 108 milhões firmado pela Prefeitura de São Paulo com o Instituto Conhecer Brasil (ICB). A entidade é presidida por Karina Pereira da Gama, produtora do filme Dark Horse, cinebiografia de Jair Bolsonaro. Documentos mostram que o acusado recebeu R$ 12 milhões como terceirizado no programa WiFi Livre SP — montante que revela irregularidades, sobrepreços e vínculos políticos ainda não totalmente explicados.
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A prefeitura contratou o ICB para instalar e manter 5 mil pontos de internet gratuita em comunidades de baixa renda. O edital foi alvo de 20 apontamentos de irregularidades do Tribunal de Contas do Município, incluindo critérios genéricos para selecionar uma ONG para um serviço técnico que poderia ter sido executado pela Prodam, empresa pública especializada no setor. As diferenças de preço chamaram atenção: a Prodam cobra R$ 306 por ponto instalado; o ICB recebeu R$ 1.800 pela instalação e mais R$ 1.800 mensais pela manutenção.
Relatórios mostram que a prefeitura aceitou pagar a manutenção de pontos inexistentes. Ao definir 30 de junho de 2024 como data-base de funcionamento de toda a rede, mesmo com parte dos equipamentos instalados meses depois, foram liberados R$ 26 milhões referentes a serviços prestados antes da existência real dos pontos.
Nesse arranjo, a Favela Conectada — empresa de Alex — assumiu a manutenção de 2 mil pontos, recebendo R$ 712 mensais por unidade. Em um único repasse, a empresa faturou por 12 mensalidades de 218 pontos que funcionaram pouco mais de dois meses. O endereço comercial da empresa é o mesmo prédio onde funciona um escritório cujo aluguel e caução eram pagos pelo ICB.
A conexão entre os contratos e a produção da cinebiografia de Bolsonaro levanta dúvidas adicionais sobre a circulação de recursos. O acordo foi assinado por Alex, por sua esposa — que morreu após as agressões — como testemunha, e por Karina Gama, dirigente do ICB e responsável pelo filme.
A prefeitura afirma que não há relação entre as autorizações concedidas para filmagens e o contrato de wi-fi, defendendo que o programa é essencial para garantir conectividade a famílias vulneráveis. A gestão ainda diz que a organização social cumpriu as exigências do edital e que 3,2 mil pontos estão ativos, com outros 1,8 mil previstos para 2026.
Conexões políticas e zonas de sombra no fluxo de dinheiro
Nos bastidores, a descoberta de que o acusado por feminicídio recebeu R$ 12 milhões de um contrato municipal expôs um desconforto crescente na equipe do prefeito Ricardo Nunes. A interlocutores, integrantes da administração admitem preocupação com o impacto político da associação entre a gestão e uma empresa informalmente ligada a um filme de exaltação a Bolsonaro, num momento em que o prefeito busca apoio no centro e tenta evitar desgaste com a direita paulistana.
Fontes próximas ao setor de fiscalização relatam que o caso reacendeu discussões antigas sobre a proximidade entre operadores de campanhas conservadoras e entidades contratadas via organizações sociais. Há movimentações para cruzar pagamentos do ICB com repasses privados ligados à produção do filme, numa tentativa de mapear eventual sobreposição de fluxos financeiros.
A discrepância entre o valor cobrado pela Prodam e o preço pago ao ICB reforça a suspeita de superfaturamento. Técnicos afirmam que pode haver material suficiente para abertura de auditoria extraordinária e para que o Tribunal de Contas avance em investigações sobre entrega, prazos e execução real dos serviços. Nos gabinetes, questiona-se também quem autorizou a antecipação de pagamentos e por que o controle interno da prefeitura não barrou repasses por manutenções inexistentes.
Deputados que destinaram emendas ao Instituto Conhecer Brasil (ICB) ou entidades associadas (antes ou paralelamente ao contrato com a prefeitura):
• Mário Frias (PL-SP) — duas emendas de R$ 1 milhão cada ao ICB para projetos de incentivo ao esporte e letramento digital em 2025. Intercept Brasil
• Alexandre Ramagem (PL) — emenda para a ONG Academia Nacional de Cultura (ligada à presidente do ICB). Intercept Brasil
• Carla Zambelli (PL) — emenda para a mesma ONG. Intercept Brasil
• Bia Kicis (PL) — emenda à Academia Nacional de Cultura. Intercept Brasil
• Marcos Pollon (PL) — também destinaram emendas à ONG associada. Intercept Brasil
• Gil Diniz (deputado estadual-PL) — emenda de R$ 200 mil para a ONG. Intercept Brasil
Esses repasses foram feitos antes da celebração do contrato municipal de internet gratuita e demonstram a rede de apoio político que permeia o ecossistema de entidades ligadas à produtora do filme. Os valores foram usados em projetos diversos, como incentivo esportivo e inclusão digital, mas são pagamentos de parlamentares do PL fortemente alinhados à produção de Bolsonaro, contextualizando o fluxo financeiro e político que envolve as organizações envolvidas no contrato com a Prefeitura de São Paulo




