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segunda-feira, junho 9, 2025

Ameaças à liberdade de expressão fragilizam o estado democrático no Brasil

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Segundo o último levantamento do projeto Comunica que Muda, realizado pela agência Nova S/B, a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos recebeu mais de três milhões e oitocentas mil denúncias de conteúdo de ódio em meios digitais nos últimos onze anos. Na rede da ONG SaferNet, dedicada à promoção e à defesa dos direitos humanos na internet, já foram mais de quatro milhões de denúncias desde 2006.

Grande parte das denúncias está nas redes sociais. Ao monitorar plataformas como Instagram, Twitter e Facebook, de julho a setembro de 2017, o projeto Comunica que Muda detectou cerca de 220 mil menções a diferentes tipos de intolerância, sendo 77% comentários negativos, isto é, de caráter preconceituoso ou que reforçavam discursos de ódio. O número é menor do que o observado no levantamento de 2016, quando mais de 500 mil menções a intolerâncias foram detectadas e 84% foram negativas. A queda na incidência de discursos negativos estava associada à queda nas postagens políticas entre períodos eleitorais e após o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff.

A eleição de 2018 fez ressurgir o tsunami de intolerância, dessa vez fortemente alimentado por parte dos candidatos. Uma característica de destaque foi que, além de reacender discursos de ódio, o contexto político-eleitoral tornou bastante polêmico o debate sobre liberdade de expressão. Direito fundamental do cidadão, diretamente ligado à dignidade da pessoa humana, a liberdade de expressão tem sido usada paradoxalmente como justificativa para ataques a diferentes grupos na internet, especialmente os minoritários.

O silenciamento de comunicadores

Outro grupo bastante atacado na internet é o de jornalistas e demais comunicadores, que têm a liberdade de expressão como princípio básico de seu trabalho. Segundo relatório de violações à liberdade de expressão publicado pela ONG Artigo 19, dedicada a garantir o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação em todo o mundo, o Brasil alcançou a marca de 35 violações graves à vida e à liberdade de comunicadores em 2018. A política foi o contexto principal em 74% dos casos. Os principais violadores são agentes do próprio Estado, que reagem a denúncias de corrupção e de irregularidade no exercício de suas funções.

Para Thiago Firbida, coordenador do programa de proteção e segurança da Artigo 19, também é preciso chamar a atenção para o viés de gênero que existe na violação à liberdade de expressão de comunicadores. “Quando se trata de ataques e discursos de ódio contra comunicadores, a maioria dos casos são ataques contra mulheres comunicadoras, que já sofrem uma série de dificuldades no exercício de seu trabalho, dada a estrutura machista que existe na comunicação brasileira”, afirma Firbida.

O ataque à liberdade e à vida de comunicadores vem acompanhado de um processo geral de descredibilidade dos meios de comunicação. O próprio governo federal tem adotado uma postura hostil em relação à imprensa, com desqualificação de vários trabalhos jornalísticos em publicações e notas oficiais. Os efeitos dessa postura se reverberam para outros setores sociais, aprofundando a crise de desinformação e violência.

Na defesa da liberdade de expressão e do respeito à dignidade humana, o sistema judiciário tem se mostrado um mediador necessário. É nele que denúncias de discriminação e violações às liberdades individuais e coletivas são julgadas e punidas, mas a solução para tais ameaças à democracia não pode se restringir a aspectos jurídicos. É preciso envolver a sociedade como um todo. “A liberdade de expressão é condição de possibilidade para todo o resto. Se há uma violência policial desmedida e as pessoas não puderem denunciar, ou aqueles que denunciarem forem silenciados, a violência vai se reproduzir sem que isso seja discutido e enfrentado e sem que a maioria da sociedade sequer saiba”, diz Severo. Para ela, alcançar e envolver diferentes grupos sociais no enfrentamento dos problemas requer abordagens nos campos educacional, cultural e ético.

Ciência e educação como arenas de formação e enfrentamento

Parte do aspecto formativo que fortalece o debate democrático passa pela ciência. O campo científico é capaz de fornecer evidências e propor soluções baseadas em dados para diversos problemas da sociedade. Além disso, o pensamento crítico característico da ciência é um aliado importante na hora de analisar a qualidade de informações e propostas com as quais as pessoas se deparam no cotidiano.

Expandir o alcance das informações e habilidades científicas exige um trabalho efetivo de divulgação e educação. Mas, assim como ocorre com a imprensa, ataques à credibilidade de pesquisadores e instituições de pesquisa têm aumentado nos últimos anos e têm sido incentivados por ações do próprio governo federal. Os cortes sucessivos na verba destinada à ciência e à tecnologia no Brasil e a tendência do governo em deslegitimar dados e evidências científicas são formas indiretas de inibir a voz de pesquisadores. De forma mais direta, é possível citar o exemplo da exoneração de Ricardo Galvão,  diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), após o presidente Jair Bolsonaro afirmar, em julho, que dados do instituto sobre o aumento do desmatamento da Amazônia eram mentirosos.

Para Laura de Freitas e Ana Bonassa, fundadoras do canal de divulgação científica Nunca vi 1 cientista, a postura do governo federal ainda não afetou gravemente a liberdade de expressão dos pesquisadores, mas tem tornado o trabalho de divulgação mais difícil. “Este é um governo que pauta ‘informações’ em meras opiniões e ignora evidências científicas. Isso dá força para os seus seguidores agirem da mesma forma e se fecharem contra novas informações e fatos que destoem do que pensam”, afirma Freitas.

A maior dificuldade de diálogo na divulgação científica também se reflete na intensificação de manifestações agressivas contra cientistas na internet. No caso do canal “Nunca vi 1 cientista”, reações ao conteúdo postado são mais comuns quando o tema abordado é polêmico ou desafia preconceitos. Foi o caso da ineficácia da ingestão de cápsulas de colágeno como tratamento antirrugas e da aplicação retal de alvejantes como cura para autismo. Quando pessoas descontentes com o conteúdo perdiam a argumentação científica, passavam a um ataque pessoal.

A forma que Freitas e Bonassa encontraram para lidar com os ataques é um misto de estratégias. Os comentários que contêm apenas discurso de ódio são sumariamente ignorados, mas aqueles que incluem dúvidas e questionamentos são respondidos com argumentos que enriqueçam a discussão. O cuidado em responder aos questionamentos pode não modificar a ideia do autor da mensagem agressiva, mas ao menos contribui para a decisão de pessoas sem posição definida que buscam informações de qualidade.

Por valorizarem o debate, as pesquisadoras consideram que a presença de comentários agressivos é um bom sinal, indicando que o vídeo saiu da chamada “bolha” de pessoas que compartilham das opiniões das autoras. “Quando saímos da bolha atingimos o público que queríamos. E aí entra a importância de debater com os haters. É trabalho de formiguinha, mas acreditamos que isso tem um grande impacto e de certa forma ajuda a construir nossa reputação”, diz Bonassa.

Luanne Caires é bióloga e mestre em ecologia pela Universidade de São Paulo (USP). Tem especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp) e integrou o Programa Mídia Ciência (Fapesp).


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