Por Ieda Maria Andrade Lima
A gênese do conceito de cidadania é a relação do indivíduo com o Estado. Mas não é só. Numa sociedade como a nossa, baseada no capital e que tem no consumo seu principal fator de propulsão, cabe a dois atores principais desenhar outro aspecto da cidadania: a relação entre consumidores e fornecedores.
Ambos têm direitos e obrigações que precisam ser equivalentes; é necessário que o produto fornecido ou o serviço prestado corresponda à contra-partida que se ajustou.
Pergunta-se: O consumidor brasileiro conhece e exige respeito a seus direitos?
A resposta fica a meio caminho. Conhece seus direitos, mas não completamente. Reclama, mas nem sempre e nem de tudo. Reivindica, mas não chega às últimas conseqüências. E é excessivamente tolerante quanto à qualidade e à segurança, especialmente de serviços. Mesmo em acidentes de consumo, com lesões graves e óbitos, é proporcionalmente reduzido o número de demandas judiciais por indenização.
As causas desse comportamento são históricas. Os consumidores foram \”atropelados\” pela revolução industrial e, de repente, ao invés do conhecido artesão, seu vizinho, confiável, de família tradicional no ramo, os consumidores encontram na esquina, a pessoa jurídica impessoal e anônima.
Enquanto o empresariado se estruturou e se articulou rapidamente, os cidadãos sequer tiveram consciência de que estavam sendo jogados numa vala com o rótulo: consumidores. Esse atordoamento permitiu que se estabelecesse um desequilíbrio de forças, impulsionado pelo objetivo do lucro rápido e do quanto maior, melhor.
Foi necessário cerca de meio século para que os primeiros vestígios de reação aparecessem e a iniciativa partiu de juristas, conscientes de que um novo tipo de direito estava formado, mas ainda sem reconhecimento: os direitos difusos e coletivos. E esses direitos careciam de proteção.
Portanto, o direito do consumidor não nasceu de uma estruturação concomitante com a do mercado. Nasceu em desvantagem, como um time que entra em campo já perdendo de cinco a zero.
Isso gerou conformismo, temor reverencial aos poderosos e consolidou a desigualdade de forças.
Estamos há um ano vivendo a crise do setor aéreo, mas nada foi feito, senão tentativas de \”abafar\” investigações. E o que aflorou a partir de uma tragédia (queda do avião da Gol), permaneceu caótico até produzir a segunda e maior tragédia (acidente com o avião da TAM). Mais de trezentos e cinqüenta mortes, famílias destruídas e a população atônita e atemorizada.
A mídia mostra saguões de aeroportos lotados, famílias sem informações, sem apoio, sem sequer poder enterrar seus mortos. Mulheres, idosos e crianças espalhados pelo chão, verdadeiros flagelados de uma catástrofe sem data para terminar.
Do outro lado do balcão, inoperância, ineficiência e até perplexidade de autoridades, administradores e empresários.
Quantos irão lutar por seus direitos? Quantos terão coragem para enfrentar os custos de uma demanda, os meandros processuais, a lentidão da Justiça? Que forças restarão às vítimas desse caos, após o esforço necessário para recuperar, ao menos, os corpos de seus entes queridos?
Essas circunstâncias somadas à falta de conscientização de cidadania traduzem o perfil do grande contingente de consumidores brasileiros que ainda não representam uma massa crítica e reivindicante. Nos países em que a conscientização é maior, o respeito aos direitos também é maior. Há preocupação dos empresários quanto à qualidade e segurança dos produtos e serviços. O clamor dos prejudicados também influencia quem tem o poder de punir. Os valores de indenização fixados pelo Judiciário norte-americano, por exemplo, são expressivamente superiores aos dos tribunais brasileiros. E, nessa medida, é que se consegue o respeito do empresariado, já que atinge a própria sustentabilidade do negócio. Indenizações irrisórias não punem, geram baixos índices de risco e uma solene indiferença dos culpados, além de não recompensarem o prejuízo do consumidor.
Mas há uma inquietação latente na comunidade consumidora e que se mede por um lento, ainda incipiente, mas crescente nível de exigência. Cabe aos próprios consumidores impulsionar essa tendência, atingir a maioridade, deixando de ser hipossuficiente.
O Código de Defesa do Consumidor e os órgãos de defesa do consumidor são instrumentos dessa tarefa. Fazer valer seus direitos é exercício de cidadania e constrói uma sociedade mais justa!