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domingo, dezembro 22, 2024

Literatura e vida

Data:

Pedro J. Bondaczuk

A literatura tem alguma importância prática em nossa vida, ou não passa de mero passatempo (posto que muito agradável, pelo menos para mim, quer na condição de leitor, quer na de escritor), uma espécie de refinado lazer? Sou suspeito (suspeitíssimo) para opinar, posto que vivo dela. É o meio pelo qual obtenho meu sustento.
Entendo, todavia, que a literatura é muito importante para a “fermentação” de idéias, para o estudo do comportamento das pessoas e para nos indicar, sobretudo, o que não devemos fazer, caso tenhamos intenção de obter sucesso em nossas atividades e na convivência do dia a dia.
Contudo, ela tem lá sua importância, mesmo que relativa. Nem é inútil, como acusam os que não sabem ou não gostam de ler, e nem essencial à vida, como pretendem os que a produzem. É uma espécie de vinho. A bebida, se tomada com moderação, nos dá inegável prazer. Mas se ingerida em excesso… embriaga e não alimenta. Ademais, tem que ser de boa qualidade, para não nos dar ressaca.
Se a literatura é importante na vida das pessoas (e estou absolutamente convicto que é), qual é seu verdadeiro papel no estudo dos seres vivos (principalmente dos humanos)? Para quê serve de fato? Para divertir, ou para instruir, orientar, analisar e concluir? Alguém pode, a esta altura, perguntar: “mas não temos a ciência para isso?”. Temos. Mas somente ela não basta.
A vida não se restringe, apenas, a leis naturais e imutáveis e nenhum ser vivo reage de forma absolutamente igual. Ela é sutil e não comporta análises mecânicas e genéricas. Para sua compreensão, são necessários exemplos, das várias formas de comportamento das pessoas. Ainda assim, somos incapazes de compreender em profundidade esse maravilhoso mistério, esse privilégio, essa magnífica aventura que é viver.
Há pessoas (sobretudo escritores, que é o que me interessa nestas descompromissadas reflexões) com imensa cultura, ecléticas – que sabem um pouco de tudo, de ciência, filosofia, literatura, música etc. – mas que ocupam posição na sociedade que não condiz com a vastidão dos seus conhecimentos. Por que? Falta-lhes um ingrediente essencial para o sucesso: a iniciativa.
Não conseguem superar o seu medo de exposição. Não usam o que sabem em sentido prático, para erigir alguma obra durável (material ou intelectual). Limitam-se a ostentar a vasta cultura que têm em conversas informais, humilhando, embora sem essa intenção, os que não contam com esse acervo de conhecimentos.
Aquilo que aprendermos somente terá valor se for usado (e bem-utilizado) em sentido prático. Afinal, cultura não é nenhum adorno para ser exibida por aí. O escritor português, Inácio Dantas, observa a respeito: “Ter grande conhecimento e não o usar é como ter uma grande biblioteca e não abrir um único livro”. Ou, pior, é ter esse enorme acervo e ser analfabeto (mesmo que não literal, mas espiritual).
Quem faz literatura, convive, o tempo todo, com um assustador fantasma, que o persegue e atormenta sem cessar: o medo. Afinal, para escrever bem, algo que se aproveite e, sobretudo, permaneça e não seja descartável, é indispensável que o escritor se exponha. Não me refiro à exposição de cultura, informações, estilo, nada disso. É indispensável que esteja, por completo, no texto que produz, e sem que o leitor sequer se dê conta.
Os episódios mais dolorosos e dramáticos da sua vida, os que lhe causaram, algum dia, danos tidos como irreparáveis, o mais intenso e violento sofrimento, têm que vir à tona, necessariamente, emergir, com toda a sua crueza e violência, e se espraiar no texto. Mas com talento e emoção. Nada, absolutamente nada pode ou deve ser escondido. Sem isso, a produção literária parecerá (mesmo que não seja), artificial, mentirosa, vazia de conteúdo. Faltar-lhe-á verossimilhança.
Não conheço nenhum escritor de sucesso que não sinta este medo da exposição pessoal. Assisti vários filmes a respeito e conversei com diversas pessoas sobre isso. O cinema tem explorado com maestria esse aspecto da produção literária. Vi, não faz muito, no Telecine, canal de televisão a cabo, excelente produção desse tipo (cujo nome, não me recordo). Era a história de um escritor, autor de alguns best-sellers que, subitamente, parou de escrever. Os que acreditam nela diriam que “perdeu a inspiração”.
Assumiu uma atitude cínica perante os amigos e conhecidos e se tornava até agressivo sempre que instado a voltar a escrever. Dizia que tudo o que tinha a dizer ao mundo, já havia dito nos livros anteriores. Garantia que estava vazio e se sentia bem assim. Mentira, claro!
Um dia, foi confrontado com um jovem e ambicioso editor, que passou a provocá-lo de todas as maneiras, para ver se o despertava. O rapaz, inexperiente, porém perspicaz, criticou-o, desafiou-o, ridicularizou-o e nada. Ambos chegaram, mesmo, às vias de fato. Até que num dado momento, o veterano escritor, num lampejo de lucidez e coragem, admitiu que havia perdido a garra de escrever por medo.
Desde que ficara viúvo, não havia escrito uma única linha. Como tinha estabilidade financeira, não precisava se expor para obter o sustento. Ocorre que a esposa morta era o amor da sua vida. Não conseguira absorver essa perda e tentava, a todo custo, em vão, esquecer aquela mulher. Forçado pelo jovem editor a lembrar-se dela, rompeu-se, afinal, a sólida barreira que havia construído ao longo dos anos. As emoções, dolorosas e sufocantes, vieram à tona, com irresistível intensidade, levando tudo de roldão e causando-lhe sofrimentos dobrados. Mas era a catarse salvadora de que precisava.
Foi quando o veterano escritor, rilhando os dentes, tomou uma atitude extrema: aceitou o desafio de ficar cara-a-cara com seus fantasmas. Superou (mas não eliminou) seu medo e… voltou a escrever. E produziu livros e mais livros, em quantidade e com qualidade, como nunca antes havia produzido. E estes venderam aos milhões, porque eram originais, intensos, verdadeiros, emocionantes e, sobretudo, apaixonados (no sentido lato de paixão).
Eu também, diariamente, sou desafiado a encarar (e vencer) meu medo. Ao sentar-me, diante do computador, para escrever, sinto-me como o patriarca bíblico Jacó, que lutou uma noite inteira com um anjo, para que este o abençoasse.
Luto, igualmente, a todo o instante, com um desses seres superiores, para que me abençoe e eu encontre, sempre, qualquer que seja o texto que esteja produzindo, as palavras adequadas, as metáforas exatas, a indispensável correção gramatical e a linguagem mais singela, direta e empática para atingir o coração dos meus anônimos leitores. Mas com intensidade, emoção e verdade. Todavia o medo de fracassar nunca desaparece. Está ali, assustador, sempre presente, a espreitar-me, atormentando-me sem cessar. É a sina do escritor…

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