Projeto abre caminho para beneficiar condenados do 8 de janeiro e enfrenta questionamento de inconstitucionalidade
A Câmara aprovou, às 2h26 desta quarta (10), o texto-base do chamado PL da Dosimetria — pacote que recalcula penas e acelera progressão de regime para condenados por crimes ligados à tentativa de golpe e aos atos do 8 de janeiro de 2023. Foram 291 votos a favor, 148 contra e 1 abstenção. A proposta segue ao Senado.
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O que parecia uma mudança técnica de regime de cálculo penal se revelou uma operação política: a alteração concentra efeitos imediatos sobre sentenças já prolatadas, com potencial para reduzir o tempo em regime fechado de condenados de alta relevância, inclusive o ex-presidente Jair Bolsonaro. Especialistas de direito penal ouvidos reservadamente dizem que a medida cria risco concreto de colisão com cláusulas pétreas da Constituição e com entendimentos firmados pelo Supremo — ou seja, pode ser inconstitucional e objeto de enfrentamento no Judiciário.

A votação de madrugada espelha uma articulação que evitou debate público e empurrou pela janela mudanças que, se sancionadas, terão impacto direto sobre quem já foi condenado pelo esquema golpista. A peça central do texto substitui o cômputo cumulativo por regra de “absorção” do crime mais grave, com acréscimo fracionado — fórmula que, na prática, tende a comprimir anos de pena. Além disso, reduz o tempo para progressão ao regime aberto de 1/4 para 1/6 da pena — mudança que, combinada com remissão por trabalho/estudo e regras de conversão, pode antecipar saídas do regime fechado.
A votação não foi um acidente. Em Brasília, líderes relataram — e a imprensa nacional registrou — que a pauta foi colocada de surpresa pelo presidente da Câmara, Hugo Motta, e que a operação foi costurada entre blocos do Centrão, o PL e parcelas que detêm cargos no governo. Há indícios, no passo a passo político, de barganhas: apoio a pautas econômicas e agendas de interesse do Executivo em troca de garantias sobre matérias sensíveis ao bloco que sustentou a votação. Essa conjugação entre interesses de gabinete e interesses de foro cria um fio condutor: transformar uma disputa jurídica em solução legislativa.
A operação legislativa teve lados. De um lado, parlamentares e partidos que vêm sofrendo desgaste com decisões judiciais e inquéritos e que agora buscam um atalho legislativo para reduzir o efeito prático de condenações. Do outro, ministros e procuradores — e uma parte significativa da magistratura — que veem na iniciativa uma tentativa de alterar o alcance das punições já definidas pelo Judiciário, levantando a hipótese de inconstitucionalidade por afronta direta ao núcleo da proteção do Estado Democrático de Direito.
A pressa é elemento revelador: pautar e votar às 2h da manhã reduz exposição pública, dificulta mobilização de contrapartes (advogados, juristas, imprensa) e aumenta a chance de aprovação de pontos polêmicos sem destaques que poderiam alterar o efeito prático do texto. É a técnica clássica de aprovar alterações de grande impacto com mínima resistência pública.
Projeto é inconstitucional
- Cláusula pétrea e proteção ao regime democrático: leis que, na prática, visem desfigurar a proteção ao Estado Democrático de Direito podem colidir com cláusulas que não admitem alteração por lei ordinária.
- Ofensa ao princípio da separação dos poderes: usar legislação para revertê-se, em efeito prático, o resultado de decisões judiciais sobre autoria e responsabilização política pode configurar tentativa de interferência indevida sobre a função do Judiciário.
- Retroatividade das vantagens penais aplicadas a condenados pro Brasil: ainda que a lei penal mais benéfica seja permitida, a combinação de regras de absorção + progressão acelerada aplicada a sentenças já transitadas abre disputa sobre o alcance temporal e a moralidade do ato legislativo.
Quem puxou a fila?
A iniciativa foi pautada e costurada politicamente por Hugo Motta (presidência da Câmara) e ganhou corpo em blocos do Centrão e do PL.
O relatório do deputado Paulinho da Força alterou a redação técnica, convertendo proposta de anistia ampla em texto de dosimetria que concentra efeitos sobre condenados do 8/1. É preciso checar contratos, encontros e fluxos de apoio entre relator, assessores e escritórios jurídicos que atuam em recursos contra sentenças do STF.
Os 122 deputados de partidos com cargos no governo votaram a favor — sinal de que houve troca política envolvendo estrutura do Executivo.
Parlamentares como Carla Zambelli e outros nomes do PL/Republicanos já aparecem em investigações, inquéritos ou denúncias que tangenciam o 8 de janeiro (assessores com transferências ao hacker Delgatti, inquéritos no STF, etc.). Esses vínculos tornam a composição dos votos um objeto investigativo — há motivos para checar sessões de gabinete, ordens de serviço, transferências e fluxos financeiros de assessores.
A PGR denunciou dezenas de suspeitos de financiar atos e a AGU chegou a listar pessoas físicas e empresas como prováveis financiadores — são alvos que podem explicar por que certas bancadas pressionam por redução de penas. Rastrear contratos públicos dessas empresas e vínculos com parlamentares que votaram a favor é prioridade.




