Pedro J. Bondaczuk
O poetinha Vinícius de Moraes gostava de zoar os paulistas (pelos quais, na verdade, tinha muito carinho e admiração). Ficou célebre a sua afirmação – que sempre que citada é colocada fora de contexto passando a impressão de uma hostilidade que nunca existiu – que São Paulo era o “túmulo do samba”. Claro que o bom boêmio carioca sabia que isso não era verdade. E quanto mais os paulistas se revoltavam com essa afirmação, mais o poetinha se divertia.
Vinícius sempre valorizou os compositores de São Paulo, como Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolin e milhares e milhares de outros, além de seus intérpretes, músicos, maestros, instrumentistas etc. Toda brincadeira só tem graça quando as pessoas com as quais brincamos ficam zangadas com nossas zoadas. E era o que o poetinha fazia. Quanto mais zangados alguns paulistas ficavam, mais ele repetia a sua afirmação.
Contudo, em certo aspecto Vinícius tinha razão, embora, certamente, sequer lhe passasse pela cabeça esse fato. Por burrice, preconceito e abuso do poder de algumas autoridades (as tais “otoridades”, que não enxergam um palmo adiante do nariz), São Paulo transformou-se, de fato, em túmulo de uma das mais belas e autênticas manifestações culturais do Estado (da qual havia, portanto, sido berço): o batuque paulista, ou “umbigada”.
Até há pouco tempo, eu nunca tinha ouvido falar desse tipo de dança, conhecido em fins do século XIX e início do XX como “samba”, do qual, ao que me consta, foi a verdadeira matriz. Informei-me, pela primeira vez, a respeito, no excelente livro “Oito bananas por um tostão”, do jornalista Benedito Barbosa Pupo (de quem tive a honra e orgulho de ser amigo e companheiro de trabalho no Correio Popular).
Trata-se do testemunho de quem viveu aquele período, numa Campinas que renascia das cinzas, após ter quase sido varrida do mapa por um surto de febre amarela. Esse tipo de publicação, pela sua preciosidade, deveria ser bancado pelo Poder Público e distribuído, gratuitamente, a todos os cidadãos campineiros, por se tratar de um dos mais preciosos (e deliciosos) documentos dessa magnífica cidade.
Pupo escreve, na página 137 da referida obra: “No começo do século (XX) e alguns anos depois do seu segundo quartel ainda se dançava o samba de terreiro em Campinas, ou melhor falando o batuque, segundo os estudiosos. O 13 de Maio, o glorioso dia do negro, era então motivo de grandes manifestações e regozijo por parte daqueles que haviam sido libertos pela Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, assinada pela Princesa Isabel, e também pelos remanescentes daqueles que se haviam beneficiado pela lei anterior chamada de ‘Ventre Livre’”.
E meu saudoso amigo prossegue: “Os dois locais me lembro, onde se realizava o samba, como era conhecido naquela época: Palheiro e Aguada da Campinas Velha, o primeiro lá no ‘Fundão’, lá para as bandas do atual Cemitério da Saudade, antes conhecido como ‘Cemitério do Fundão’. O segundo, junto ao córrego que corta a Avenida Moraes Sales, onde existe o trevo viário. Não me lembro de ter visto muitos deles, mas sei que o negócio era na base da pinga e da umbigada”.
O batuque foi trazido para o Brasil e, mais especificamente, para São Paulo, pelos escravos bantos, procedentes de Angola e do Congo. Hoje, restam três únicos e solitários núcleos, compostos apenas por sexagenários, nas cidades de Tietê, Piracicaba e Capivari. Ou seja, a umbigada está em vias de total extinção.
E qual a causa do desaparecimento de tão importante manifestação artística da nossa legítima cultura? O pesquisador Mauro Dias nos revela, nua e cruamente: “De fato, no início dos anos 50, a polícia determinou que o batuque de umbigada era imoral e não podia mais ser realizado. Os participantes foram fotografados, fichados, alguns presos. Acabou porque houve intervenção policial, assassinato cultural”. E Mauro classifica essa atitude estúpida, preconceituosa e ignorante (cujas palavras assino embaixo) de “tragédia que desfaz memória, corta vínculos, interrompe o fluxo da História, cala, cega, ensurdece. Mata”.
A sede desmedida pelo poder corrompe as pessoas, mesmo que elas não se dêem conta. Desvia seu foco dos objetivos que deveriam buscar: a serenidade, a alegria, a amizade e o amor, entre outras metas. Não é o que a maioria ambiciona. Quer, isto sim, ter mais do que o necessário, para se sentir superior aos que não têm tanto; dar ordens, embora não tenha tirocínio e preparo para isso, para se sentir “importante” e ser servida, em vez de servir, que, no seu entender, é símbolo da superioridade que busca. Grande engano!
Somado a isso, há o preconceito racial latente, posto que disfarçado, num país de mestiços, em que isso nunca poderia e nem deveria ocorrer. Mas ocorre. E muito, a despeito de leis, instituições e até da existência de um ministério que objetiva a integração racial. Agora, pergunto: o que, em termos de seres humanos, se entende por “raça”?
A classificação de pessoas por esse parâmetro é, sobretudo, indigna. Animaliza os homens. Estes possuem como identidade o seu poder de raciocínio, o livre-arbítrio, o fato de serem “imagem e semelhança” da divindade, independente da cor da sua pele ou do lugar em que nasceram.
Raça é algo que se aplica somente para seres inferiores, para os animais, jamais para pessoas. Mas é este conceito estúpido e ilógico que ainda prevalece nos dias hoje, a despeito de tanta facilidade de informação e não somente no Brasil, mas na maior parte do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, os conflitos raciais permanecem sempre latentes. Na Rússia, distúrbios étnicos fazem correr rios de sangue. E o racismo se multiplica pela Grã-Bretanha, Itália, França etc., gerando violência, tragédia e dor. Os racistas, desgraçadamente, não aprenderam nada com a História. Que pena!