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quinta-feira, setembro 19, 2024

A “loucura mansa” de José Mindlin, o maior bibliófilo brasileiro

Data:

MindlinnnPor Mariana Dorigatti e Caroline Nunes

 

Dono da maior biblioteca particular do país, Presidente da Sociedade de Cultura Artística, membro da Academia Brasileira de Letras, o bibliófilo José Mindlin contou em entrevista exclusiva ao Jornal Local sobre a sua paixão por livros, a qual ele mesmo define como “loucura mansa”.

Aos 95 anos, o bibliófilo revela como foi a busca incansável pela primeira edição de O Guarani, a iniciativa de doar cerca de 30 mil títulos para a USP (Universidade de São Paulo), e a dor de não conseguir mais ler.

 

Jornal Local: Como começou o gosto pela leitura?

José Mindlin: A leitura foi uma coisa que eu vivi desde criança, eu tive essa sorte. Quando me perguntam quando é que surgiu a paixão pelos livros, a minha resposta tem sido que, paixão, em geral não se explica. Quando alguém me pergunta, eu pergunto de volta: Você nunca se apaixonou? Deve ter se apaixonado, né? Não dá pra explicar propriamente, mas é porque desde criança eu cresci no meio de livros, e isso já direcionou o gosto.

 

J.L: Então não pode nem falar que é hobby, é uma paixão mesmo, né?

Mindlin: Não é hobby. Quando as pessoas falam de hobby eu protesto, hobby é uma coisa quase acidental e também superficial. Não é hobby, é paixão. Se eu vivesse sem os livros não seria feliz. Hobby você muda de um para outro.

 

J.L: Além disso, tem os livros raros, e este “palavrão” que é bibliófilo, explique um pouco sobre isso.

Mindlin: Bibliófilo como “palavrão” é a primeira vez que eu escuto (risos), mas eu reconheço que é uma palavra que às vezes assusta um pouco. Eu chamo a bibliofilia de loucura mansa, eu sofro dessa doença. Não faz mal à ninguém, mas para mim é uma loucura. Eu não sossego enquanto eu não chego aos livros, foi uma das grandes fontes de prazer da minha vida.

Os livros raros são uma especialização da bibliofilia, e eu como bibliófilo, gosto de livros. Em primeiro lugar existe o prazer da busca, que às vezes, é mais interessante do que ter o livro, quando você consegue o livro já desaparece a razão de ser do esforço. E procurei, por exemplo, quase trinta anos a primeira edição de O Guarani, eu procurava desesperadamente, entrava em todas as livrarias pra saber se tinha, e nada de conseguir. Eram conhecidos cinco ou seis exemplares da primeira edição de 1857. Em bibliofilia o acaso é um dos fatores mais importantes de sucesso. Você tem que procurar, mas encontrar, daí entra o acaso. Fui à Europa, cheguei em Paris e lá encontrei um amigo que me disse: Olha, fulano tem a primeira edição de O Guarani, e ele está aqui em Paris. Quando eu comprei pensei: Bom isso valeu a viagem. Eu andava para cima e para baixo com uma pasta sempre com O Guarani dentro, onde eu ia ele ia comigo. Alguns dias depois, voltei para São Paulo, cheguei em casa e disse a minha mulher: Sabe o que eu comprei em Paris? O Guarani, mas já perdi, eu esqueci no avião. Quase uma semana depois, a Air France mandou o volume que tinha ficado no avião e está na estante. Agora eu não deixo ele sair de casa.Eu diria que procurar o livro e encontrar é uma grande satisfação da vida. Agora quando o livro está na estante, não tem a mesma vibração. Na biblioteca há muita coisa que eu procurei e encontrei.

 

J.L: Atualmente está procurando algum livro?

Mindlin: Agora não, já estou velho. Não posso começar uma coisa que eu não sei se vai dar tempo de continuar. As coisas mais importantes que eu procurei na vida estão todas aqui na biblioteca.

 

J.L: Além de O Guarani quais são os outros livros raros?

Mindlin: Na literatura brasileira as primeiras edições geralmente são raras, além disso, eu gosto de ter livros como tipografia, como ilustração, não só de coisas brasileiras. Tenho muita coisa de literatura estrangeira, que às vezes é muito mais complicado de encontrar do que as brasileiras, porque literatura brasileira. O Guarani é de 1857, é do século XIX para cá. Na literatura universal você vai até o século XV, então a procura é grande e o campo de procura é muito maior. Mas ao mesmo tempo eu não sou escravo dos livros, já me aconteceu de ver um livro que eu procurava, e disse ao livreiro: Deixa que eu vou pensar. Dois dias depois eu passei na livraria e tinha sido vendido. Isso foi uma lição para mim, quando eu vejo um livro, que me interessa, que eu estava procurando, é comprar sem hesitar. Às vezes o preço parece exagerado, mas o dinheiro você recupera, o livro não. Evidentemente dentro das minhas posses, se me pedem um preço muito alto, aí eu não perco o sono por causa disso, não compro, não sou escravo do livro.

 

J.L: E como surgiu essa ideia de doar parte da biblioteca para a USP?

Mindlin: Eu tenho quatro filhos, e nenhum deles tem condições de ficar com a biblioteca, então eu teria que dividir entre os quatro, agora um livro raro se você divide, dá parte para um, parte para outro, perde a expressão. Então era encontrar um local que assegurasse a continuidade, e os filhos de pleno acordo, e assim eu consegui reunir não podia se fragmentar, então o lugar melhor para estar é a universidade. Se eu vendesse não poderia ter nenhuma segurança do conjunto ser mantido. E eu nunca olhei pra questão material, para o valor de verdade. Eu não comprava por negócios, então para mim o valor material não existe. Então você tinha que dar para uma instituição, e aí como eu sou um uspiano, minha mulher também era, meus filhos todos estudaram na USP, tenho netos na USP, é o destino. Então está lá construindo um prédio para por a biblioteca.

 

J.L: Quanto exemplares foram doados?

Mindlin: Olha, deve ser um 20 ou 25 mil títulos, e acho que de volumes deve passar de 30 mil. A biblioteca tinha de ser isolada das outras bibliotecas da USP, várias bibliotecas queriam ter, e aí para agradar a um e desagradar a outros, todos amigos, o jeito foi separar. Esses que nós doamos vão ser o início de uma brasiliana mais completa ainda no futuro.

 

J.L: Há uma estimativa de valor da biblioteca?

Mindlin: Se eu fosse pensar em valor material provavelmente eu não doaria, então isso para mim, valor comercial de um livro é a última coisa que eu poderia pensar.

 

J.L: Existe um projeto de digitalizar os livros?

Mindlin: Nós estamos digitalizando aqui, tem o robô na biblioteca. Mas isso é uma coisa que leva tempo, a grande vantagem, provavelmente eu leve a breca antes dos livros serem transferidos. Como os filhos estavam de acordo, eles vão cuidar disso, mas eu não preciso ter o sofrimentozinho de tirar livros da estante e passar para lá.

 

J.L: Como é esse apego com livros? Já emprestou algum livro?

Mindlin: Livro não se empresta, livro é consultado aqui em casa. Tem um pavilhão aqui na biblioteca que a gente construiu e quando eu pego um livro para saborear, olhar, a bibliotecária no começo protesta, e isso fica uma brincadeira engraçada, porque ela não gosta que eu pegue da biblioteca e leve onde eu costumo ler.

 

J.L: Você leu todos os exemplares?

Mindlin: Não. Eu li bastante na vida, durante várias décadas eu lia mais de 100 livros por ano, agora isso em 50 anos são cinco mil livros, então não é tanto, outros irão ler os livros que eu não li.

 J.L: Você falou de algumas obras estrangeiras, quantos idiomas você fala?

Mindlin: Eu falo português, inglês, francês, alemão, italiano, espanhol. Dá pra ler bastante.

Latim eu ainda tenho, eu cheguei a fazer até versão do português para o latim, mas o que restou da memória não é um conhecimento fluente, mas se eu pego um livro em latim eu consigo entender. Então essa seria uma língua a mais. Eu acho uma falta não ter mais nas escolas, porque o latim é a raiz da nossa língua e de várias outras, é uma construção admirável.

 J.L: E além de ler também já escreveu algum livro?

Mindlin: Escrevi pouca coisa, porque eu me achava mais leitor do que escritor. Não há termo de comparação entre o que eu li e o que eu escrevi. Agora de uns anos pra cá, eu publiquei Uma vida entre Livros, por insistência de amigos. Não é uma autobiografia de tudo que aconteceu, é mais focalizando a parte do livro. E depois saíram mais alguns livros. Quando fui convidado para entrar na Academia Brasileira de São Paulo eu primeiro recusei, dizendo que eu era um leitor e não um escritor, mas eles acharam que o meu contato com os livros justificava perfeitamente eu ser da Academia. E quando a Academia Brasileira de Letras me convidou eu também fiz essa objeção, mas acabei entrando. Porque também é um meio dos livros, os acadêmicos de um modo geral gostam de livros. A Academia não é só de escritores é de pessoas ligadas aos livros, eu tenho muitos amigos lá, mas eu nunca procurei entrar, eu fui eleito sem nunca pleitear.

 J.L: Como é o seu trabalho na Sociedade de Cultura Artística?

Mindlin: Meu pai foi um dos fundadores da Sociedade de Cultura Artística, em 1912, então eu cresci ouvindo falar de cultura artística. E quando foi nos anos 30 e poucos eu já era sócio e acabei entrando para diretoria, meu pai morreu em 1939, mas eu já estava vivendo a cultura artística, porque eu ia muito aos concertos. Entrei para diretoria já faz quase 30 anos e acabei sendo presidente.

 J.L: Você lê jornais e revistas ou apenas livros?

Mindlin: Jornal eu sempre lia superficialmente, revistas a mesma coisa, eu acho que eu li sempre mais livros do que qualquer outra coisa, e por uma dessas injustiças da sorte, eu estou com um problema de visão e não consigo ler. Agora tenho que recorrer a amigos para serem meus leitores, e há também alguns leitores profissionais, então eu não parei de ler porque eu não posso ler, mas não é a mesma coisa, quando chega de noite e eu quero pegar um livro na estante, eu pego, mas não consigo ler. Mas isso foi depois de ter lido alguns milhares de livros.

 J.L: Como você acha que se pode incentivar a leitura em uma sociedade cada vez mais voltada para a televisão?

Mindlin: Os leitores sempre foram minoria na sociedade brasileira, antes da televisão, antes de haver essas novas tecnologias os leitores eram minoria e continuaram sendo. Eu não tenho a menor dúvida de que vão continuar, não vão ser substituídos, porque você tem além da leitura, você pode comandar o ritmo, você pode voltar atrás, reler, a releitura é um grande prazer, de modo que se eu fosse me contentar com televisão ou rádio eu leria muito menos. Não afetou o meu nível de leitura, e nem de muitos amigos com o mesmo interesse que eu.

 

J.L: O que você acha do Kindle, o futuro livro digital?

Mindlin: Olha quando eu tive essa conversa de livro eletrônico, viviam me falando, e eu sempre dizia que o contato com o livro é insubstituível, o toque do papel, mas enfim, uma pessoa me disse que queria fazer uma demonstração do livro eletrônico, e queria uma fotografia minha com o livro eletrônico na mão, e eu disse: se eu puder ter o livro eletrônico em uma das mãos e o livro convencional na outra, tudo bem, porque senão vai parecer que eu aderi ao livro eletrônico. O pessoal veio em casa com o aparelho para mostrar o livro eletrônico e como funciona, mas quando ele apertou o botão, não funcionou. Eu disse que isso era uma coisa impossível de se acontecer em um livro convencional. Eu leio desde os sete anos, portanto quase 90 anos. O livro é insubstituível!

 

J.L: E o que você acha dos livros que viram filmes.

Mindlin: Eu gosto muito de cinema, mas paradoxalmente vejo pouco, devo ter visto alguns filmes sobre livros bastante bons, e alguns bastante ruins. Eu acho que filmagem de um livro se é bem feita tem a grande vantagem de despertar o interesse pela leitura. Muito mais gente vai ao cinema do que lê livros sobre literatura. Mas aí depende de ser bem feito, se não falseia as qualidades dos livros.

 J.L: Essa seria uma forma de incentivar a leitura então?

Mindlin: Incentiva a leitura sim, mas não há receita de incentivar a mocidade e a infância a ler. Eu tive sempre como uma das boas formas de incentivar a leitura da criança é proibir. Se eu digo: Não, esse livro você não pode ler, você não vai entender, deixa para mais tarde, você pode ter certeza de que no dia seguinte a criança está lendo o livro escondida. Tudo que é proibido é atraente.

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