Os trinta anos da morte de Carlos Lacerda passaram em branco. Foi em 21 de maio de 1977. O maior carbonário da política brasileira, o homem de extraordinária cultura e eloqüência, o jornalista que derrubou dois presidentes, que quase chegou a presidente do Brasil não foi esquecido. Mas o aniversário de sua morte foi ignorado.
Há muitos Lacerdas a se analisar. O golpista, que tentou montar um dossiê falso, a Carta Brandi, que supostamente mostraria a conspiração de Jango com Perón para implantar uma república sindicalista no Brasil. O erudito, que rivalizava com San Tiago Dantas no posto de mais brilhante político brasileiro do seu tempo. O orador extraordinário, que conseguiu deixar mal Roberto Campos em debate sobre a estabilização econômica. O líder carismático, que fazia com que jovens voluntários se dispusessem a ser seus guarda-costas. O amigo de André Maurois, Malraux.
Aliás, aqueles tempos eram tão civilizados que dos anos 20 aos 60 a política brasileira conviveu com apenas três dossiês falsos: as cartas de Arthur Bernardes, que criaram problemas com os militares; o Plano Cohen, escrito por Olympio Mourão Filho, que serviu de álibi para a decretação do Estado Novo em 1937; e a Carta Brandi, de Lacerda. Perto da profusão de dossiês de hoje, eram tempos quase angelicais.
Parte relevante sobre a vida de Lacerda está nos arquivos de seu ex-advogado Fernando Velloso que, antes de morrer, doou ao Fernando Moraes.
Lacerda foi um furacão em permanente erupção a vida toda. Cedo ainda, rompeu com o pai Maurício de Lacerda, por ter se separado de sua mãe, Olga Werneck de Lacerda. Ficou rompido quase toda a vida com o irmão Maurício, porque ficou do lado do pai. Reconciliou-se apenas perto do fim.
Uma faceta murmurada, mas pouco divulgado de Lacerda, era seu homossexualismo. Lacerda era um animal sexual, no sentido amplo do termo. Os psicólogos poderão discorrer melhor sobre essa força da natureza que joga a sexualidade como seiva para o trabalho, as batalhas políticas e os embates amorosos.
Tinha 1,82 metros, mas, quando se levantava da mesa, e se apoiava, parecia ter duas vezes mais. Nesses momentos chegava a ser ameaçador. E era essa presença possante, com uma retórica impecável, que intimidava os adversários.
O jovem Carlos Lacerda teve muitas paixões. Em 1952 foi incumbido pelo Diário Carioca de cobrir a campanha de Eisenhower, nos Estados Unidos. Pegou o avião, mas parou em Belém do Pará onde ficou por vários meses, apaixonado por uma prima.
Tempos depois, parecia apaixonado por Maria Fernanda, atriz filha da poetisa Cecília Meirelles. O jogo era mais complexo. O jovem Carlos Lacerda havia sido apaixonado pela própria Cecília, trinta anos mais velha, quando foi sua foca, provavelmente no “Observador Econômico”, revista de economia da época. Poderosa, inatingível, a poeta deu-lhe apenas atenção. Muitos anos depois, aproximou-se de Maria Fernanda, filha de Cecília, mas para ficar próximo de um parente dela, por quem ficou perdidamente apaixonado, sem ter sido correspondido.
Em um livro esgotado, “O Livro de Antonio” (José Olympio, 1974), o romancista Antonio Carlos Villaça narra uma cena na fazenda Bocaina, de Severo Gomes, de um Lacerda desesperado de paixão.
Tudo era suportado estoicamente por dona Letícia, sua esposa. Se não era fácil ser amigo de Lacerda, devido ao seu temperamento instável, explosivo, muito menos ser esposa.
Dona Letícia foi uma moça bonita, irônica, inteligente, culta, e absolutamente discreta em público. Padecia de uma surdez crônica, que a levou até a Suíça para se tratar. Quinze dias depois da morte de Lacerda, um grupo de amigos foi almoçar com ela no Rócio, a chácara que tinham em Petrópolis. No meio do almoço, uma das senhoras comentou alguma coisa e dona Letícia respondeu. João Condé, jornalista cultural, mostrou-se surpreso: “Ora, Letícia, você não tinha problemas de audição?”. E ele: “Com quinze dias da morte do Carlos, já posso começar a ouvir de novo”.
Foi esposa dedicada a vida toda. Aos amigos costumava dizer que era a única mulher nascida em Valença que tinha lido toda a Enciclopédia Britânica. Depois contava, gozadora, que Lacerda chegava todo dia à noite, depois de jantar no Neno, sentava-se na cadeira de balanço que foi de seu avô, e passava horas reclamando das pessoas e da política. E dona Letícia ao lado… lendo a Enciclopédia Britânica para desanuviar.
Apesar das constantes aventuras, apenas uma vez Lacerda saiu de casa, um mês antes de sua morte. Ficou na casa do amigo Fernando Delamare, mas voltou a tempo de morrer em casa.
Sua carreira política terminou um pouco antes da sua morte, quando o SNI infiltrou um agente bonitão como jardineiro de sua casa em Petrópolis, que acabou gravando uma cantada dele.
Trinta anos sem Lacerda
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