Do que minhas filhas irão se lembrar de mim, de que gesto, que molecagem, que pito, que conselho? Lá sei eu.
Outro dia conversava com o Paulo Leandro, diretor de jornalismo da TV Cultura, neto do grande compositor paulista Marcelo Tupinambá. O avô já velho, enxergando pouco, levava o Paulo, com cinco anos, o irmão dele, com seis, para andar de bonde. Em um dos passeios, Paulo pediu ao avô se podia descer do bonde pela janela. O avô não se fez de rogado. Foi até o motorneiro, cochichou alguma coisa. O bonde parou, Tupinambá desceu e tirou o neto pela janela.
Que neto há de esquecer?
Meu pai não chegava a essas liberalidades. Mas as melhores recordações dele são os pequenos gestos. Lembro-me, talvez com cinco anos, levantando de manhã, antes de ele abrir a farmácia, para uma volta na Circular de Poços. Chegávamos ao ponto final, descíamos, meu pai comprava uma guloseima em um carrinho, não sei se doces ou milho. Comíamos, depois entrávamos no Circular e voltávamos para casa. Só isso. Inesquecível!
Outra lembrança antiga era ele me dando a mão para andar na rua. Tinha um tique, um jeito de passar o afeto discreto, que era roçar com o mindinho a borda da minha mão. Com todas as minhas filhas repeti esse gesto. E em cada afago de mindinho me lembrava do seu Oscar e sua afetividade discreta.
Lembro-me como se fosse ontem da primeira vez que ele e dona Tereza me levaram ao cinema. Foi em uma sessão noturna. Acho que era um musical com o herói de guerra Audie Murphy. Eu era tão pequeno que, durante anos, me ficou a sensação de drama. No musical, há uma cena em que o mocinho leva uma martelada na cabeça e desmaia. Só décadas depois assisti novamente e descobri que ele era acordado por um beijo da mocinha.
O que mais me impressionou não era o filme, mas eu segurando as mãos de ambos, a caminho do cinema, olhando para cima, aqueles dois adultos imensos, poderosos, protetores, conversando em voz baixa, rindo de forma cúmplice. No cinema, a mesma sensação. Um comentava algo com o outro, que ria baixinho. Esticava a orelha tentando captar a conversa, mas não conseguia.
Do que minhas filhas irão se lembrar? Luizinha, certamente, do dia em que a deixei no Shopping Eldorado, depois fui buscá-la. Tinha um dos primeiros celulares. Ela me ligava de orelhão informando a posição. Pedi para ficar na porta do shopping. Passei, e nada. Meia hora para me ligar de novo. Pedi que ficasse na porta do supermercado. Outra volta, e nada. Mais meia hora, me liga de novo. Já impaciente, pedi que ficasse na porta do McDonalds. Estacionei o carro, fui até lá, e nada. Aí ela me liga, do alto de seus dez anos:
— Papai, em que shoppings você está?
— No Morumbi, ora!
— Mas você me deixou no Eldorado.
Pausa.
— Papai, sabe o que somos?
— Diga.
— O Debi e o Lóide (uma dupla que fazia filmes de humor na época).
Quem esquecer há de? Ou quando deixava a Maricota na Escola Pacaembu, e, na frente das amiguinhas, gritava para ela voltar a pedir a “bença”? Certamente Luizinha não se esquecerá jamais do dia em que joguei sorvete em sua cabeça, ela saiu correndo atrás de mim para descontar e, nesse instante, entram em casa quatro coleguinhas, certinhas como ela. Ou mesmo quando íamos para a banheira, eu enchia de espuma que ia crescendo, crescendo, até transbordar. E a Luizinha, naquele tempo com uns seis anos:
— Acho que mamãe vai dar uma bronca em nós!
Não sei se Maricota se lembrará de quanto ficava com ela para a mãe ir lecionar, trocava a fralda, que ficava sempre do avesso.
Bibi jamais se lembrará quando, com menos de um ano, a mãe pedia que eu desse banho, e ela escapava feito bagre ensaboado das minhas mãos e deslizava pela banheira. Mas vai lembrar quando viajamos sozinhos para João Pessoa, ela com apenas cinco anos. Dois anos depois, preparou um diário para a escola com o feito mais relevante de cada ano de vida. Com cinco anos, foi a viagem com papai.
Cacá certamente se lembrará do dia em que contou para o vovô que pretendia mudar de nome quando completasse 18 anos. A razão? Os colegas que mexiam: “Clara, onde está a Gema?” E vovô sugeriu que trocasse o nome para Omelete Nassif. Certamente se lembrará da “tia” Dodó, do alto de seus sete anos, recomendando: “Ignora, Cacá, ignora”.
Outro dia, provocadas, as três menores admitiram que o papai (e vovô) era chato. Aí indaguei:
– Querem que eu deixe de ser?
E elas:
– Assim está bom, mas não pode aumentar.
Neste dia dos pais, teremos um almoço com todas, preparado pela primogênita Mariana. Luizinha, minha primeira caçulinha estará fora, em Buenos Aires para onde se mudou. Antes de ontem, conversei com ela pelo MSN. Na despedida, me disse:
— Boa noite, papai.
Achei que depois de certa idade, as nossas crianças deixassem de falar “papai”. Ainda bem que não.