Sociedade do secretário Guilherme Piai com consultoria ambiental levanta irregularidades no governo de Tarcísio
Por Sandra Venancio
O secretário de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Guilherme Piai (Republicanos), figura central da gestão agroambiental do governo Tarcísio de Freitas, mantém sociedade com a empresa Ambientale Ativos Florestais – ligada ao grupo Maggi e que atua prestando serviços em uma área diretamente subordinada à pasta que Piai comanda. O caso gera fortes indícios de conflito de interesses e risco à imparcialidade da administração pública estadual.
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Em junho de 2024, Guilherme Piai e o pai, Sérgio Luiz Leal Filizzola, abriram a empresa Fazenda Água Cristalina Ativos Ambientais SPE Ltda., na qual a Ambientale entrou como sócia, detendo cerca de 40% das ações. As companhias compartilham o mesmo endereço em São Paulo e até o mesmo domínio de e-mail corporativo.

A Ambientale é uma consultoria que oferece serviços de emissão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e de regularização junto a órgãos estaduais – precisamente atividades que tramitam junto à secretaria que Piai dirige.
Piai defende-se, alegando que a sociedade se destina apenas à monetização de uma propriedade familiar de cerca de mil alqueires, localizada em Paranaíta (MT), avaliada em R$ 24 milhões, e que “não há qualquer conflito de interesses”. Segundo ele, “meu pai me pediu para fazer parte da sociedade. Tornei-me sócio porque ele gostou da empresa depois que ela fez um trabalho técnico na fazenda”.
Serviços regulados sob sua gestão
No site da Ambientale constam como principais serviços a emissão e validação do CAR e a regularização ambiental de imóveis rurais – processos que, no Estado de São Paulo, tramitam pela pasta de Piai.
Apesar disso, o secretário afirma que “não tem ingerência nenhuma ou autonomia sobre a aprovação de CARs”.
Entretanto, desde que assumiu a função, em setembro de 2023, o volume de cadastros ambientais validados em São Paulo saltou de cerca de 25 mil para 185 mil — aumento de aproximadamente 640%. A política de sua gestão prevê validar “100% dos cadastros possíveis” até 2026.
A valorização desse tipo de regularização também gera demanda para serviços de consultorias ambientais — como aqueles prestados pela Ambientale — o que intensifica os questionamentos sobre o potencial de conflito.
Proximidade com o grupo Maggi
A Ambientale integra o grupo Maggi e já se reuniu com membros do governo estadual. Em outubro de 2023, apenas um mês depois da nomeação de Piai, os diretores da Ambientale, Roberto Maggi e Denis Storani, foram recebidos no gabinete do secretário para tratar de formas de agilizar o CAR.
Em postagens nas redes sociais, a empresa elogiou abertamente a secretaria de Piai como “sucesso nas validações de CARs em São Paulo”.
No mesmo sentido, em novembro de 2024, a Ambientale publicou foto com Piai e afirmou que a gestão estadual “demonstra compromisso ambiental e eficiência”.
Segundo registros, quatro meses antes, os mesmos executivos da Ambientale foram recebidos no Palácio dos Bandeirantes pelo secretário da Casa Civil, Arthur Lima.
Avaliação de especialistas
A professora Adriana Cecílio (Uninove) afirma que “existe conflito de interesses quando um agente público atua em processo que envolva ele próprio, parentes ou empresas das quais seja sócio”. Ela ressalta que “cabe à Controladoria-Geral do Estado analisar a conduta do secretário e instaurar um processo administrativo, se for o caso”.
O advogado environmentalista Luís Balieiro vai além e critica o arranjo institucional: como o cadastro ambiental rural (CAR) foi transferido da pasta ambiental para a agricultura em São Paulo, a supervisão de regularização – que deveria ter caráter técnico e independente – estaria subordinada a uma estrutura com forte interface produtiva. Para ele, “passar o CAR para a Agricultura é entregar o galinheiro à raposa”.
Transparência e restrição de dados
Diferentemente de outros estados, São Paulo não divulga publicamente quem solicita os CARs ou quais empresas prestam os serviços técnicos de regularização. Em resposta a solicitação da Lei de Acesso à Informação, a Secretaria afirmou que “nem todos os dados solicitados podem ser fornecidos”.
O site oficial da pasta permite apenas consulta do número de registro do CAR, sem identificação de requerente ou empresa contratada. Dessa forma, não é possível saber quantos cadastros validados pela secretaria foram feitos por meio da Ambientale – empresa da qual o próprio secretário é sócio.
Implicações e riscos
O cenário monta um quadro em que o agente público responsável por regularização ambiental mantém vínculo privado com empresa que se beneficia, direta ou indiretamente, da atividade regulada pela sua pasta. Isso fere princípios constitucionais como o da impessoalidade, moralidade e eficiência da administração pública.
A velocidade de validação de cadastros promovida pela secretaria também levanta a questão de rigidez técnica e fiscalização: se há estímulo intenso à regularização, mas os dados de quem o faz permanecem ocultos, como garantir que não haja favorecimento ou seleção privilegiada?
Além disso, a atuação da Ambientale em consultoria pode se beneficiar de políticas públicas agonais às quais o secretário tem influência, direta ou indireta.
Procurada, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo afirmou que “o processo de análise e aprovação dos CARs é técnico, padronizado e autônomo” e que o secretário Piai “não participa de decisões individuais relativas aos cadastros”.
A Ambientale, questionada sobre a sociedade, disse que o vínculo com Piai “se limita à propriedade mencionada e que não há prestação de serviços em São Paulo a partir dessa sociedade”. A empresa argumentou ainda que os serviços que presta são regulares, dentro da legalidade, e que não há favorecimento direto.
Reportagem feita pelo UOL (a que este texto se baseia) aponta que são esses precisamente os elementos que geram suspeita: sociedade com empresa consultora que atua em área regulada pela pasta, participação em reuniões com o secretário, elogios públicos da empresa à secretaria.
Investigação
Caso a Controladoria‑Geral do Estado de São Paulo (CGE-SP) decida abrir investigação, poderá instaurar Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o secretário. Esse procedimento pode levar à sanção, afastamento ou mesmo perda da função caso se constate violação ao dever de imparcialidade ou exercício irregular do cargo.
Além disso, a falta de transparência sobre quem solicita e realiza os cadastros ambientais impede fiscalização externa e torna o regime menos robusto contra captura privada de benefícios regulatórios.
Os denunciados podem enfrentar questionamento por parte do Ministério Público, seja em âmbito estadual ou federal, especialmente se houver indícios de favorecimento ou omissão de deveres públicos.
Contexto político-estrutural
A pasta da Agricultura, sob gestão de Piai, ganhou ampla visibilidade no governo Tarcísio, com ações de regularização fundiária e credenciamento de produtores. Ele próprio é descrito como “nova geração” no agronegócio paulista, aliado forte no oeste-paulista e com discurso de modernização agrícola.
Entretanto, a articulação produtiva relevante para o agronegócio paulista — via créditos, serviços técnicos, regularização ambiental — torna a interface entre público e privado extremamente sensível. Nesse ambiente, a manutenção de sociedade privada em empresa que atua no setor regulado abre fragilidades substantivas para o controle da gestão pública.
Fiscalização
O secretário Guilherme Piai, responsável por aprovar, supervisar ou autorizar processos de regularização ambiental em São Paulo, mantém sociedade com consultoria que presta justamente esse tipo de serviço regulado. A combinação de vínculos societários, atuação regulatória e falta de transparência sistêmica configura um cenário propício a conflitos de interesses. A ausência de dados públicos robustos sobre quem realiza os processos de CARs torna difícil aferir eventuais favorecimentos e fragiliza o controle externo. A ação da Controladoria-Geral e de órgãos de fiscalização será decisiva para a clareza desse caso – e para o fortalecimento da moralidade na administração pública paulista.




