Pedro Almodóvar, o já consagrado diretor espanhol, lançou em 2024 seu primeiro filme totalmente em inglês, O Quarto ao Lado, uma adaptação do romance What Are You Going Through, de Sigrid Nunez. Agora disponível na Netflix, o filme faz jus ao respeito já conquistado por Almodóvar como grande diretor e criador de obras de arte. Se o filme fosse uma pintura, cada cena é meticulosamente desenhada para encantar sem, contudo, perder de vista o todo, um belo quadro da sétima arte.
Assisti ao filme depois de as crianças irem dormir e, embora não quisesse ficar até tarde em frente à TV, não consegui parar de assistir até o filme terminar. Como toda boa obra de arte, há vários aspectos que chamam atenção e merecem reflexão. Porém, vou fazer um recorte e realizar um breve comentário sobre um aspecto secundário que surge logo no início do filme. Cuidado, há spoiler.
Fred (Alex Høgh Andersen) é um colega de escola de Martha (Tilda Swinton), com quem tem um relacionamento adolescente antes de servir um ano como soldado na guerra. Quando retorna, diz para Martha que já não é o mesmo, e que pretende partir em breve. Um dia, já casado com outra pessoa, e em outro lugar, durante uma viagem de carro, em ambiente rural, o casal avista uma casa pegando fogo. Fred para o carro e corre para verificar se há pessoas precisando de ajuda. A esposa tenta impedi-lo, mas em vão. Fred diz que está ouvindo gritos de pedido de socorro e que precisa ajudar. A esposa não ouve os gritos, mas não consegue impedir que o marido entre na casa em chamas. Fred morre antes de atingir o segundo andar, e curioso é que um dos bombeiros informa que Fred foi a única pessoa encontrada na casa; não havia mais ninguém lá.
Fred, conforme o contexto das conversas que tinha com Martha, se sentia culpado pelo que tinha feito, visto e vivido durante a guerra. Isso nos faz refletir como são atuais as reflexões de Sigmund Freud, contidas em seu seu texto Os criminosos por sentimento de culpa, escrito em 1916. Freud argumenta que muitas pessoas são tomadas por sentimento de culpa e muitas vezes não sabem o porquê. Isso leva, desde jovens até adultos, a cometerem pequenos delitos, como recurso, por assim dizer, para dar um rosto à culpa que sentem. Isso, por mais estranho que pareça, proporciona um sentimento de alívio. Em casos extremos, argumenta Freud, alguns se tornam criminosos, não necessariamente porque são maus, mas para encontrar, de maneira palpável, uma fonte para sua culpa.
Fred, no filme, não assassinou uma outra pessoa, mas pôs um fim em si mesmo – como tudo leva a crer, como uma saída para a sua culpa. Os gritos que diz ter ouvido seriam os da sua consciência, ante o tribunal do superego, ou seria de sua própria morte, oferecendo as chamas como uma fogueira da expiação? Isso nos faz pensar, por exemplo, quantos acidentes, de todos os tipos, são, na verdade, suicídios e homicídios motivados por um sentimento de culpa já preexistente.
Dando um passo a mais, há os que acreditam que a culpa no mundo contemporâneo – que já é quase o reino da liberdade, já teria desaparecido ou que seja apenas relíquia em canto mofado. Penso diferente. Entendo que ela seja, como diria Elis Regina, um perigo na esquina. Dois exemplos para ilustrar. Michel Foucault, filósofo francês, já dizia, no final da década de 1970, que no mundo contemporâneo cada pessoa encara a si mesma como uma empresa, ou seja, as pessoas se veem como um empreendimento que deve alcançar o sucesso. Para quem chega lá, não raro é tomado pela culpa – porque não se acha merecedor e, além disso, há os seus à sua volta que ficaram para trás. Embora não pareça, isso pode configurar um peso enorme. Por outro lado, quem não alcança o sucesso se sente culpado porque acha que fez algo de errado e passa a se ver como um fracassado.
Por último, quando reina absoluto o ideal de felicidade, é bem estranho que a depressão já seja, desde 2018, a principal causa de incapacitação no mundo, chegando a figurar, do ponto de vista da epidemiologia, um problema de saúde pública. Uma pessoa facilmente pode se sentir culpada, como argumenta a psicanalista Maria Rita Kehl, de não estar se divertindo tanto como acha que as outras pessoas estão. Desse exemplo, pode se generalizar para coisas aparentemente banais da vida, como, por exemplo, por comer algo considerado não saudável ou por faltar um dia de treino na academia.
De fato, se olharmos com mais cuidado, o Freud de cem anos atrás e filmes como O Quarto ao Lado continuam nos interpretando muito bem e, quanto à culpa, parece que continua sendo um perigo na esquina. Cuidado, meu bem!
Sobre o autor: Francisco Neto Pereira Pinto é professor universitário, escritor e psicanalista. Doutor em Ensino de Língua e Literatura. É autor de À beira do Araguaia. Instagram: @francisconetopereirapinto