A poesia de Mário Quintana encanta, por todos os motivos imagináveis, até quem não aprecie o gênero. Tem musicalidade, ritmo, harmonia, metáforas originais e sumamente criativas e até rimas, quando oportunas. Não lhe falta nada, portanto, nem mesmo variedade de temas e de formas, alternando estilos de uma produção para outra com a mesma agilidade e suprema criatividade. Não é, pois, como determinados poetas que produzem um ou outro poema excelente, próximo da perfeição, sendo o restante de sua obra uma mesmice de irritar até estátuas.
Contudo, a característica que personaliza a poesia de Quintana, o que a marca e a torna singular, é o tom coloquial que adota. Isto faz do leitor mais do que mero “consumidor” de versos: torna-o cúmplice. Há, em cada poema seu, indisfarçável toque de ironia, mas na medida certa e não daquela ironia ácida e mal-humorada, que implica, tacitamente, em crítica, mas a repleta de bom-humor e de pungente ternura.
Quintana amava a tudo e a todos, sobretudo a Porto Alegre, cidade que adotou como sua que, a exemplo da Alegrete natal, traz a palavra “alegria” no nome. E esse amor respinga em toda a sua poesia, sem nenhuma exceção, porém sem pieguice e nem pedantismo. Aliás, é apenas insinuado, nunca (ou quase nunca) explicitamente declarado. Captamo-lo, todavia, ao ler qualquer dos seus versos.
Na minha relação de poetas brasileiros favoritos (e são tantos!), cinco se destacam e dos quais me considero “cúmplice”, sendo um gaúcho, um carioca, uma fluminense (não é a mesma coisa), um mineiro e um pernambucano. O leitor atento e bem-informado com certeza já identificou quais são. Em todo o caso… nomeio-os, de maneira explícita. São, respectivamente: Mário Quintana, Vinicius de Moraes, Cecília Meirelles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Que time! Todos merecedores de um Prêmio Nobel, que nunca receberam.
Desse quinteto, todavia (não consigo esconder) tenho ligeira predileção pelo meu conterrâneo, embora os outros quatro tenham características um tanto semelhantes e me encantem e deliciem da mesma maneira. Todos os cinco são responsáveis pela minha visão peculiar de vida: pela valorização do que é belo, alegre e nobre.
Sou capaz de recitar, todavia, num sopro, sem precisar ler, pelo menos quatro dezenas de poemas marcantes do meu conterrâneo. E não se trata de ter boa memória (que de fato tenho), mas de identidade espiritual com o poeta. Recito-os de olhos fechados e vejo-o, nitidamente, à minha frente. E mais, ouço o próprio Quintana (que se materializa diante de mim) dizer seus versos, com um brilho maroto e terno no olhar e com aquela sua inflexão de voz peculiar e aquele delicioso sotaque dos Pampas, que para mim é música dos anjos. (Ele tinha uma forma característica de sorrir. Sorria não somente pelos lábios, mas também pelos olhos). Nenhum outro poeta, por mais que admire sua poesia, me produz esse mesmo efeito.
Até quando trata da morte, Quintana não deixa de retratá-la de forma irreverente e brincalhona, com humor e picardia, sem a solenidade e o toque de horror de outros colegas. Prova? Cito, sem pestanejar, este soneto intitulado “A Rua dos Cataventos”, que nos meus momentos de desânimo e irritação, recito, em voz alta (causando, não raro, espanto, nos que cruzam comigo, preocupados com minha sanidade mental):
“Da primeira vez que me assassinaram,/perdi um jeito de sorrir que eu tinha./Depois, a cada vez que me mataram,/foram levando qualquer coisa minha.//Hoje, dos meus cadáveres eu sou/o mais desnudo, o que não tem mais nada./Arde um toco de vela amarelada,/como único bem que me ficou.//Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!/Pois dessa mão avaramente adunca/não haverão de arrancar a luz sagrada!//Aves da noite! Aves de horror! Voejai!/Que a luz trêmula e triste como um ai,/a luz de um morto não se apaga nunca!”. De fato, nunca se extingue. A de Quintana brilha na escuridão das almas dos que têm o privilégio de se deliciar com seus versos, iluminando-as e guiando-as nas trevas.
A exemplo do poeta meu conterrâneo, também tenho a minha Rua dos Cataventos. Não tem esse nome, claro. E não fica em Porto Alegre, mas nesta Campinas que tanto amo (e que um dia acolherá, para sempre, meus restos), mas também está repleta de poesia. Sobretudo à noite, quando aquele bêbado solitário passa, trocando as pernas, pela calçada bem em frente à janela do meu gabinete de trabalho, dialogando com a lua, discutindo com as estrelas, fazendo coro com os mochos e os cães, embriagado de sonhos e fantasias…
Pedro J. Bondaczuk