Levantamento obtido via Lei de Acesso à Informação revela quase 3 mil armas legais de CACs e clubes de tiro desaparecidas desde 2018
Por Sandra Venancio
Desde 2018, o Brasil perdeu o rastro de pelo menos 2.893 armas registradas em nome de caçadores, atiradores e colecionadores — os chamados CACs — e de clubes de tiro. Os dados, obtidos junto ao comando-geral do Exército, revelam um rombo no controle das armas “legais” que vêm abastecendo o mercado ilegal e ampliando o poder de facções e milícias. Especialistas alertam: a combinação entre o armamento civil incentivado durante o governo Bolsonaro e o enfraquecimento dos mecanismos de fiscalização representa um dos maiores riscos à segurança pública desde o fim da ditadura militar
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Entre 2018 e 2020, o número de armas registradas como furtadas ou extraviadas se manteve relativamente estável, oscilando entre 500 e 600 por ano. Mas em 2021 o salto foi brusco: quase 700 armas sumiram sem deixar rastro. A tendência, se mantida, indica que 2022 poderia ultrapassar 1.100 ocorrências — o dobro da média anterior.

Os registros mostram um padrão preocupante: parte das armas desviadas ou roubadas reaparece em operações policiais nas mãos de criminosos. “É a retroalimentação da violência. Armas que deveriam estar sob controle do Estado ou de civis autorizados acabam voltando para as ruas, muitas vezes em crimes violentos”, afirma um oficial da reserva do Exército que pediu anonimato.
O problema, porém, não se limita ao roubo. Há indícios de corrupção interna em setores militares responsáveis pelo controle de armas. O caso do major Leonardo Machado de Azevedo é exemplar: em 2017, ele foi denunciado pelo Ministério Público Militar por peculato e falsidade ideológica ao desviar armamentos apreendidos usando o próprio sistema do Exército. Em mensagens obtidas pela Justiça Militar, o oficial chegou a pressionar um colega para alterar depoimentos e encobrir o desvio.
Da farda à milícia: a continuidade de um projeto armado
A expansão dos CACs durante o governo Bolsonaro foi justificada como um direito à “autodefesa” dos cidadãos. Mas, na prática, o que se viu foi a abertura de brechas que facilitaram o acesso de grupos criminosos a armas de alto poder destrutivo. Para o sociólogo e especialista em segurança pública Carlos Nascimento, “a política armamentista criou uma indústria de legalização do ilegal. Muitos CACs serviram de fachada para o tráfico de armas e para a formação de arsenais milicianos”.
As milícias que hoje dominam comunidades no Rio e em outros estados não nasceram do nada. Elas são fruto de décadas de promiscuidade entre o Estado e o crime, com raízes na repressão militar e apoio financeiro de setores empresariais. Policiais e militares da ativa ou da reserva formam o núcleo duro dessas organizações — um elo entre a legalidade e a ilegalidade que torna o enfrentamento quase impossível.
Fake news, política e o dinheiro do crime
Se o descontrole das armas físicas preocupa, o das “armas digitais” — as fake news — completa o cenário de caos. Em janeiro de 2023, deputados do PL, usaram as redes sociais para espalhar uma mentira sobre uma medida da Receita Federal que ampliava o controle sobre fintechs e operações via Pix acima de R$ 5 mil. A norma era um dos instrumentos para rastrear movimentações financeiras suspeitas — inclusive as usadas por facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC).
A pressão virtual promovida por parlamentares bolsonaristas levou o governo a recuar. “Perdemos uma das ferramentas mais eficientes para monitorar o dinheiro do crime organizado”, lamentou, à época, um técnico da Receita.
De acordo com investigações da Polícia Federal, o PCC já atua com empresas de fachada, fundos de investimento e fintechs próprias, utilizando o sistema financeiro formal para lavar dinheiro do tráfico e de fraudes. “O tráfico já não é o principal negócio da facção. O que existe agora é uma rede de empresas e transações legais operando dentro da economia nacional”, explica o promotor paulista Rafael Santos, especialista em crime organizado.
O Estado como cúmplice involuntário
O descontrole sobre as armas, a infiltração de agentes públicos em esquemas criminosos e a manipulação política da desinformação digital desenham um quadro alarmante. A combinação desses fatores — armas sem rastreio, dinheiro ilícito em contas legais e discursos populistas armamentistas — fortalece o poder paralelo e fragiliza as instituições democráticas.
Para Maria Clara Menezes, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “o Brasil vive hoje uma simbiose perigosa entre o crime e a política. Quando o Estado renuncia ao controle — seja das armas, das finanças ou da verdade — o poder passa para quem domina a força e a narrativa”.
Conclusão:
O desaparecimento de quase 3 mil armas legais é apenas a ponta de um iceberg. Ele revela o esvaziamento do controle estatal e o avanço de um projeto de poder que mistura ideologia, desinformação e lucro ilegal. Entre CACs armados, milicianos fardados e deputados digitais, o Brasil assiste, silenciosamente, à institucionalização do crime.
O mercado proibido que sustenta o poder das facções
A manutenção da política de proibição às drogas no Brasil é, paradoxalmente, o combustível que mantém vivo o motor financeiro das facções criminosas. A lógica é simples: quanto mais rígida a repressão, maior o valor do produto ilegal — e mais lucrativo se torna o tráfico. O resultado é um mercado bilionário controlado por organizações como o PCC e o Comando Vermelho, que se expandem não apenas nas periferias, mas também na economia formal, por meio de lavagem de dinheiro e investimentos em empresas de fachada.
O contraste com as drogas legalizadas é revelador. O álcool, responsável por milhões de mortes e doenças no mundo, é uma substância psicoativa como qualquer outra. No entanto, sua legalização não provocou o colapso social que os proibicionistas costumam prever. Pelo contrário: quando o álcool foi banido nos Estados Unidos, nos anos 1920, os índices de assassinato dispararam — e só caíram quando a lei seca foi revogada. A história mostrou que o crime organizado prospera na sombra da proibição.
Hoje, países como o Canadá, Portugal e Suíça provaram que políticas de descriminalização e regulação das drogas reduzem a violência e enfraquecem as redes criminosas. No Brasil, porém, a insistência em tratar o tema como caso de polícia — e não de saúde pública — mantém as facções no topo da cadeia econômica da ilegalidade. Enquanto a maconha continua proibida, o uísque e a cerveja seguem nas prateleiras, patrocinando festas, estádios e campanhas publicitárias. A seletividade da lei escancara a hipocrisia de um modelo que escolhe quem pode vender drogas — e quem deve morrer por isso.




