Pedro J. Bondaczuk
A cultura, em seu verdadeiro significado, é a soma da informação com a vivência e a experiência. Não se restringe, portanto, como erroneamente se supõe, ao acúmulo de conhecimentos enciclopédicos, mal entendidos e pessimamente digeridos. Ou mesmo que bem assimilados, não importa. Não é necessário que um indivíduo galgue os degraus acadêmicos, freqüente universidades, faça cursos e mais cursos de pós-graduação, colecione diplomas, para ser verdadeiramente culto. Temos exemplos em profusão a esse respeito. O mais conhecido é o de Machado de Assis, que jamais cursou qualquer escola, e no entanto foi, sem favor algum, o maior dos nossos escritores. Foi um aplicado autodidata que soube o que fazer com aquilo que aprendeu.
Há mais de três décadas, no início dos anos 60, em São Caetano do Sul, onde passei parte da minha juventude, antes de me fixar nesta Campinas que tanto amo, conheci uma pessoa assim e que se tornou marcante em minha vida. Apesar de nos tornarmos amigos, nunca soube seu nome completo. Ele nunca o revelou. Era simplesmente o João. Tendo cursado apenas o primário, tinha uma cultura vasta, vastíssima, diria até massacrante. Citava, por exemplo, os clássicos da literatura mundial com uma familiaridade que só os que os freqüentaram assiduamente (e os entenderam) poderiam fazer. Tinha um nível de informação muito superior à média. Estava em dia com a política, com os filmes em cartaz, com as peças de teatro que estavam sendo apresentadas, com o panorama internacional, com os mais recentes lançamentos de livros no País e no Exterior, com a ciência, com os esportes, de todas as modalidades conhecidas e muitas coisas mais. Era, enfim, uma enciclopédia ambulante.
Mas não era desses intelectuais arrogantes, que olham a todos do alto de uma pseudo-superioridade, a citar, pedantemente, conceitos inacessíveis à maioria. O João era humilde, com uma humildade genuína e digna. Tinha consciência do seu valor. Apenas não desmerecia os semelhantes e achava que todos estavam no seu nível. Tanto, que se dizia um \”apedeuta\”. Esperem aí ! Não se trata de nenhum palavrão impublicável! Antes que alguém que desconheça o significado da palavra, ou que não se disponha a consultar o dicionário, comece a pensar bobagem, é necessário um esclarecimento. O termo não designa qualquer doença nova e nem rotula alguma tendência sexual anormal. Significa somente \”pessoa ignorante, sem instrução\”. Exatamente o que o João não era. Essa fonte de sabedoria costumava citar Ruy Barbosa a esse propósito. O insigne tribuno iniciava um de seus célebres discursos dizendo: \”Eu, mísero apedeuta…\” Claro que o gênio baiano não era isso. Muito pelo contrário! E o João afirmava que se Ruy Barbosa se confessava nessa condição, ele se sentia muitos furos abaixo dela. E pelo seu olhar, pela sua expressão, pelo seu procedimento, percebia-se que não estava sendo falsamente modesto.
Um dia, propôs às pessoas do nosso grupo – poetas, jornalistas, professores, artistas plásticos, músicos, estudantes universitários e toda a sorte de intelectuais – a criação do \”Clube dos Apedeutas\”. Chegou a esboçar os estatutos e as regras dessa insólita entidade. Seu objetivo seria basicamente o estudo, o mais universalista possível, através da troca de experiências dos seus componentes. Entendia que somente através desse contato mais estreito, todos os membros conseguiriam ampliar seus horizontes culturais, ao ponto de deixar essa condição de \”ignorância\”. Cada qual buscaria passar aos demais, de forma clara e inteligível, a essência da sua especialidade.
Um sonhador, esse João… Sobretudo, um crédulo. Acreditava que as pessoas seriam capazes de abrir mão, por breves momentos que fossem, da sua imensa vaidade. Cria que esses intelectuais boêmios – a maioria bem-sucedida em suas atividades e alguns, inclusive, hoje com renome nacional – fossem humildes o suficiente para assumir que eram apedeutas. Claro que a idéia do clube acabou não dando em nada, para a sua frustração (e a minha também). Aquele grupo provou que, pelo menos na ocasião, dispunha da informação, mas não de cultura. Carecia da vivência e da experiência, que apenas os anos posteriores confeririam aos seus membros. Hoje, quem sabe, é até possível que a idéia desse sábio anônimo, simplesmente João (com nome, mas sem sobrenome), vingasse.