Estudo revela desigualdades regionais e alerta para impactos sociais prolongados entre crianças que perderam cuidadores durante a crise sanitária
Por Sandra Venâncio
Além das mais de 700 mil mortes diretamente causadas pela covid-19, o Brasil enfrenta uma segunda tragédia: cerca de 284 mil crianças e adolescentes perderam pais, avós ou outros responsáveis que garantiam o sustento e os cuidados no lar, somente entre 2020 e 2021. O número, estimado por pesquisadores do Brasil, Reino Unido e Estados Unidos, acende um alerta sobre profundas desigualdades sociais e lacunas na proteção desse grupo vulnerável.
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A pesquisa aponta que 149 mil desses jovens ficaram órfãos da mãe, do pai ou de ambos — uma ruptura familiar drástica que tende a agravar riscos de evasão escolar, adoecimento emocional, exploração do trabalho infantil e insegurança alimentar.

Para a professora Lorena Barberia, da Universidade de São Paulo, uma das autoras do estudo, a pandemia atingiu mais duramente famílias chefiadas por idosos. “Muitos cuidadores acima de 60 anos, além de estarem mais expostos ao risco de morte, sustentavam filhos, netos e bisnetos. Quando essas vidas se encerram, o impacto social é imediato e profundo”, explicou.
Histórias que os números escondem
Os pesquisadores reforçam que cada estatística representa uma realidade brutal, como a de Bento, que aos 4 anos viu sua vida mudar após a morte do pai, o fotógrafo Cláudio. Hoje com 50 anos, sua mãe, Ana Lúcia Lopes, relata que o luto continua presente no cotidiano. “A ausência vira rotina: quem busca na escola, quem brinca, quem abraça. O Bento perdeu tudo isso de uma vez”, conta.
A partir de modelos estatísticos, alimentados por dados demográficos, como a taxa de natalidade e o excesso de mortalidade ─ mortes acima do esperado ─ em 2020 e 2021, a pesquisa chegou a algumas estimativas:
- Cerca de 1,3 milhão de crianças ou adolescentes, de 0 a 17 anos, perderam um ou ambos os pais, ou algum cuidador com quem elas viviam, por razões diversas;
- Dessas, 284 mil se tornaram órfãos ou perderam esse cuidador por causa da covid-19;
- Com relação apenas às mortes por covid-19, 149 mil crianças e adolescentes se tornaram órfãos e 135 mil perderam outro familiar cuidador;
- 70,5% dos órfãos perderam o pai; 29,4%, a mãe; e 160 crianças e adolescentes foram vítimas de orfandade dupla;
- 2,8 crianças ou adolescentes a cada 1 mil perderam um ou ambos os pais, ou algum familiar cuidador por covid-19;
- Entre estados, as maiores taxas de orfandade são as do Mato Grosso (4,4), Rondônia (4,3) e Mato Grosso do Sul (3,8), enquanto as menores são do Rio Grande do Norte (2,0), Santa Catarina (1,6) e Pará (1,4).
Proteção de direitos sob pressão
O choque social causado pela pandemia também se refletiu na rede de assistência. Em Campinas (SP), a promotora Andrea Santos Souza identificou já em 2020 um aumento expressivo nos pedidos de guarda feitos por tios e avós — situação que denunciava a presença silenciosa da orfandade pandêmica.
Sem um sistema oficial que apontasse quem eram os herdeiros menores das vítimas da covid-19, ela precisou buscar certidões de óbito diretamente nos cartórios. O trabalho manual revelou uma dimensão até então invisível: centenas de crianças sem proteção legal adequada, muitas vezes sem acesso ao Bolsa Família, ao auxílio emergencial ou a qualquer acompanhamento social.
“As mortes chegavam e as certidões também. Era uma corrida contra o tempo para garantir direitos básicos, evitar abusos e localizar famílias que mal sabiam como proceder diante da tragédia”, relata a promotora.
Um desafio de longo prazo
Organizações de saúde e proteção à infância alertam: as consequências não terminaram com o fim da emergência sanitária. Falta acompanhamento psicológico, suporte financeiro e continuidade de políticas específicas para esses órfãos.
Especialistas defendem que o país precisa de:
- política nacional de identificação e cadastro de órfãos da pandemia
- atendimento psicológico prioritário e contínuo
- reforço do acompanhamento escolar
- garantia de renda e proteção social ampliada
- prevenção e monitoramento de violência doméstica e abusos
“A pandemia não acabou para eles”
Embora o Brasil tenha avançado na vacinação e na retomada de atividades econômicas, milhares de famílias ainda lidam com a dor — e com a desigualdade — que o vírus escancarou.
A orfandade pandêmica tornou-se uma herança cruel deixada pela covid-19, e o futuro dessas crianças dependerá da capacidade do Estado e da sociedade de não permitir que mais uma geração seja perdida para a negligência.
Dados por estado – órfãos da covid-19 e perda de cuidadores (2020-21)
| Estado | Estimativa de crianças que perderam pai/mãe ou cuidador* | Órfãos por 1000 crianças (pai/mãe) | Observação de desigualdade |
|---|---|---|---|
| Mato Grosso | ~ 4,350 (3,780-5,230) | ~ 4,4 por 1000 | Maior taxa no país para óbito de pai/mãe. |
| Rondônia | ~ 2,160 (1,800-2,630) | ~ 4,3 por 1000 | Alta incidência entre estados. |
| Pará | ~ 3,930 (3,210-4,820) | ~ 1,4 por 1000 | Uma das menores taxas entre estados. |
| Roraima | Dados indicam taxa ~ 17,5 por 1000 crianças para órfãos de pai/mãe (todas as causas, não só covid) | — | Destaca‐se em análise para “todas as causas”. |




