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terça-feira, outubro 28, 2025
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Brasil tem quase 284 mil órfãos de pai ou mãe pela covid — vidas interrompidas deixam marcas em toda a infância

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Estudo revela desigualdades regionais e alerta para impactos sociais prolongados entre crianças que perderam cuidadores durante a crise sanitária

Por Sandra Venâncio


Além das mais de 700 mil mortes diretamente causadas pela covid-19, o Brasil enfrenta uma segunda tragédia: cerca de 284 mil crianças e adolescentes perderam pais, avós ou outros responsáveis que garantiam o sustento e os cuidados no lar, somente entre 2020 e 2021. O número, estimado por pesquisadores do Brasil, Reino Unido e Estados Unidos, acende um alerta sobre profundas desigualdades sociais e lacunas na proteção desse grupo vulnerável.

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A pesquisa aponta que 149 mil desses jovens ficaram órfãos da mãe, do pai ou de ambos — uma ruptura familiar drástica que tende a agravar riscos de evasão escolar, adoecimento emocional, exploração do trabalho infantil e insegurança alimentar.

Covid-19 deixou 149 mil crianças e adolescentes órfãos em 2020 e 2021.Foto Altemar Alcantara/Semcom/Prefeitura de Manaus

Para a professora Lorena Barberia, da Universidade de São Paulo, uma das autoras do estudo, a pandemia atingiu mais duramente famílias chefiadas por idosos. “Muitos cuidadores acima de 60 anos, além de estarem mais expostos ao risco de morte, sustentavam filhos, netos e bisnetos. Quando essas vidas se encerram, o impacto social é imediato e profundo”, explicou.

Histórias que os números escondem

Os pesquisadores reforçam que cada estatística representa uma realidade brutal, como a de Bento, que aos 4 anos viu sua vida mudar após a morte do pai, o fotógrafo Cláudio. Hoje com 50 anos, sua mãe, Ana Lúcia Lopes, relata que o luto continua presente no cotidiano. “A ausência vira rotina: quem busca na escola, quem brinca, quem abraça. O Bento perdeu tudo isso de uma vez”, conta.

A partir de modelos estatísticos, alimentados por dados demográficos, como a taxa de natalidade e o excesso de mortalidade ─ mortes acima do esperado ─ em 2020 e 2021, a pesquisa chegou a algumas estimativas:

  • Cerca de 1,3 milhão de crianças ou adolescentes, de 0 a 17 anos, perderam um ou ambos os pais, ou algum cuidador com quem elas viviam, por razões diversas; 
  • Dessas, 284 mil se tornaram órfãos ou perderam esse cuidador por causa da covid-19;
  • Com relação apenas às mortes por covid-19, 149 mil crianças e adolescentes se tornaram órfãos e 135 mil perderam outro familiar cuidador
  • 70,5% dos órfãos perderam o pai; 29,4%, a mãe; e 160 crianças e adolescentes foram vítimas de orfandade dupla;
  • 2,8 crianças ou adolescentes a cada 1 mil perderam um ou ambos os pais, ou algum familiar cuidador por covid-19;
  • Entre estados, as maiores taxas de orfandade são as do Mato Grosso (4,4), Rondônia (4,3) e Mato Grosso do Sul (3,8), enquanto as menores são do Rio Grande do Norte (2,0), Santa Catarina (1,6) e Pará (1,4). 

Proteção de direitos sob pressão

O choque social causado pela pandemia também se refletiu na rede de assistência. Em Campinas (SP), a promotora Andrea Santos Souza identificou já em 2020 um aumento expressivo nos pedidos de guarda feitos por tios e avós — situação que denunciava a presença silenciosa da orfandade pandêmica.

Sem um sistema oficial que apontasse quem eram os herdeiros menores das vítimas da covid-19, ela precisou buscar certidões de óbito diretamente nos cartórios. O trabalho manual revelou uma dimensão até então invisível: centenas de crianças sem proteção legal adequada, muitas vezes sem acesso ao Bolsa Família, ao auxílio emergencial ou a qualquer acompanhamento social.

“As mortes chegavam e as certidões também. Era uma corrida contra o tempo para garantir direitos básicos, evitar abusos e localizar famílias que mal sabiam como proceder diante da tragédia”, relata a promotora.

Um desafio de longo prazo

Organizações de saúde e proteção à infância alertam: as consequências não terminaram com o fim da emergência sanitária. Falta acompanhamento psicológico, suporte financeiro e continuidade de políticas específicas para esses órfãos.

Especialistas defendem que o país precisa de:

  • política nacional de identificação e cadastro de órfãos da pandemia
  • atendimento psicológico prioritário e contínuo
  • reforço do acompanhamento escolar
  • garantia de renda e proteção social ampliada
  • prevenção e monitoramento de violência doméstica e abusos

“A pandemia não acabou para eles”

Embora o Brasil tenha avançado na vacinação e na retomada de atividades econômicas, milhares de famílias ainda lidam com a dor — e com a desigualdade — que o vírus escancarou.

A orfandade pandêmica tornou-se uma herança cruel deixada pela covid-19, e o futuro dessas crianças dependerá da capacidade do Estado e da sociedade de não permitir que mais uma geração seja perdida para a negligência.

Dados por estado – órfãos da covid-19 e perda de cuidadores (2020-21)

EstadoEstimativa de crianças que perderam pai/mãe ou cuidador*Órfãos por 1000 crianças (pai/mãe)Observação de desigualdade
Mato Grosso~ 4,350 (3,780-5,230)~ 4,4 por 1000Maior taxa no país para óbito de pai/mãe.
Rondônia~ 2,160 (1,800-2,630)~ 4,3 por 1000Alta incidência entre estados.
Pará~ 3,930 (3,210-4,820)~ 1,4 por 1000Uma das menores taxas entre estados.
RoraimaDados indicam taxa ~ 17,5 por 1000 crianças para órfãos de pai/mãe (todas as causas, não só covid)Destaca‐se em análise para “todas as causas”.

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