Programa de Assessoramento Brasil-Angola desenvolve novo modelo no controle da transmissão vertical do vírus, com resultados inéditos em termos mundiais.
Enquanto na África, o índice de transmissão materno-fetal do vírus da Aids pode chegar até 50% – ou seja, metade das mulheres portadoras do vírus tem filho HIV positivo -, Angola comemora um dos menores índices mundiais de transmissão da doença de mãe para filho. Apenas 4% das mulheres grávidas HIV positivo que participaram do programa angolano de controle da Aids tiveram seus filhos infectados pela doença. Das que participaram do programa durante toda a gestação, apenas 1,14% tiveram filhos HIV positivo. No Brasil, a taxa de transmissão materno-fetal do vírus da Aids gira entre 8% e 12%.
Além desse resultado animador, Angola mostrou ao mundo que é possível reduzir drasticamente a transmissão da doença de mãe para filho seguindo um novo modelo de tratamento – que mantém a terapia antiretroviral, mas, diferentemente do modelo clássico, suprime a obrigatoriedade da cesariana e do aleitamento substitutivo ao materno. O resultado é um tratamento seguro e economicamente viável para países pobres com infra-estrutura hospitalar precária.
A conquista de Angola só foi possível graças à assessoria de brasileiros aos angolanos no combate à doença. Iniciado em 2002, o Programa de Assessoramento Brasil-Angola para o Controle da Aids, ligado ao Ministério da Saúde Pública de Angola, reúne equipe de médicos, enfermeiros e gestores brasileiros coordenada pelo infectologista David Uip, ao lado de profissionais de saúde angolanos. Além da capital Luanda, o programa atua em mais 18 províncias e em todos os municípios, cobrindo praticamente todo o país.
Brasileiros e angolanos concentram seus esforços na implementação do programa no controle da transmissão vertical do vírus de mãe soropositiva para o filho, durante a gestação e no nascimento; do projeto “sangue seguro” e da capacitação de equipes de saúde angolanas para dar seguimento ao programa de controle da Aids em Angola.
“Levamos a experiência brasileira para Angola e avançamos na criação de um modelo, com base na realidade local, que poderá se estender ao Continente Africano”, diz Uip. “Países em desenvolvimento em outras regiões também poderão usar esse modelo.” O infectologista apresentou os resultados dessa experiência, que é pioneira em âmbito mundial, nesta quarta-feira (8/5), no III Fórum Brasileiro de Aids e I Fórum Brasileiro de Hepatites Virais, no Guarujá/SP.
O programa de Assessoramento Brasil-Angola interessa à comunidade científica internacional, segundo Uip, porque se diferencia muito do Brasil e da maioria dos países com programas estabelecidos. “Seus resultados poderão mudar o rumo de tratamentos consagrados para evitar a transmissão vertical, uma das principais formas de contágio, resultando em diminuição de custos e simplificação do tratamento”, diz o infectologista brasileiro. “E são exatamente essas condições que determinam a capacidade de expansão de programas de controle do avanço da doença para países economicamente pobres”. Na visão de Uip, esse ganho foi possível pela conjunção entre o empenho do governo angolano com o projeto e a expertise brasileira no assunto, que está sendo transferida para as equipes angolanas.
MODELO AVANÇA A PARTIR DAS CONDIÇÕES LOCAIS
O tratamento consagrado mundialmente para reduzir a transmissão vertical inclui, além da terapia antiretroviral no pré-natal e parto e da profilaxia no recém-nascido, o parto cirúrgico (cesariana) e a supressão do aleitamento materno. Em Angola, explica o infectologista, esse modelo teve que ser adaptado à realidade local, pois as condições para o parto cirúrgico apresentavam grande risco para mães e filhos e, por outro lado, a pobreza inviabilizava a substituição do aleitamento materno pelo leite industrializado.
O protocolo de tratamento em Angola manteve a terapia medicamentosa clássica no pré e pós-parto, com profilaxia no recém-nascido, mas conservou o aleitamento materno sempre que necessário e suprimiu a obrigatoriedade do parto cirúrgico – somente 14% das grávidas realizaram cesariana e, mesmo assim, porque o trabalho de parto exigiu o procedimento.
Os resultados do programa de Angola são inusitados porque colocam em xeque procedimentos consagrados no tratamento da transmissão vertical: o parto cirúrgico e o aleitamento alternativo. Com isso, torna o tratamento mais seguro e barato para as condições locais, o que facilita sua expansão para a África, um continente que, no geral, não prima pela estrutura hospitalar e no qual a maior parte dos partos ocorre fora do hospital e o aleitamento materno é, na maioria das vezes, a única fonte de nutrição para o bebê. “Nosso trabalho quebra um grande mito e, ao mesmo tempo, possibilita que o tratamento chegue a um maior número de pessoas”, resume o infectologista.
Nos hospitais, a equipe do Programa de Assessoramento Brasil-Angola para o Controle da Aids atua no dimensionamento do serviço de tratamento da Aids e na capacitação de médicos e enfermeiros angolanos para atuar no programa. A meta do programa é treinar equipes de saúde de todos os hospitais públicos de Angola para tratar pacientes HIV.
SANGUE TEM QUE SER SEGURO
Além da preocupação com a transmissão vertical e a formação de profissionais de saúde angolanos, o programa de assessoramento desenvolve o projeto “sangue seguro” e de biossegurança, buscando índice zero na transmissão do vírus HIV e de outras doenças por meio de transfusões de sangue. Para isso, hospitais, unidades de saúde e laboratórios estão sendo paulatinamente equipados. “Nossa expectativa é de ter ‘sangue seguro’ em toda Angola até 2008. Isso é fundamental para conter o avanço na transmissão da doença no país. Temos que deter todas as possíveis portas de entrada do vírus”, explica Uip.
A implementação do “sangue seguro” num país com estrutura médico-hospitalar aquém dos índices internacionais mínimos, requer a criação de um modelo que consiga dar conta de uma complexidade que vai desde a inexistência de protocolos de procedimentos de biossegurança à falta de equipamentos básicos e de infra-estrutura. O projeto prevê a implantação de novas técnicas sorológicas para a triagem de doadores em todos os bancos de sangue do país para as seguintes infecções: VIH, sífilis, hepatite B e C, HTLV-I/II, malária e tripanosomíase africana.
A visão de futuro do Programa de Assessoramento Brasil-Angola, segundo seu coordenador David Uip, é implantar centros de referência para diagnóstico, tratamento e prevenção das infecções oportunistas em todas as províncias angolanas. Para isso, será necessário adaptar estruturas de saúde nos principais centros urbanos das províncias angolanas, para assistir os pacientes suspeitos ou sabidamente infectados pelo HIV.
A equipe do Assessoramento Brasil-Angola, diz Uip, está convicta de que a disposição de salvar vidas ao lado da competência é capaz de criar alternativas a realidades muitas vezes inimagináveis para nações economicamente ricas. “Contamos com o empenho dos profissionais de saúde de Angola, que demonstram esforço além de todas as expectativas, principalmente se considerarmos um país que, por mais de 50 anos, foi devastado pela guerra”.
Segundo Uip, essa dedicação é compensada quando a equipe vê uma criança saudável, mesmo recém-nascida de mãe HIV positivo. “É um alento num caminho ainda longo que temos que percorrer em Angola até que se possa afirmar que a Aids está efetivamente sob controle no país”.
David Uip – é médico infectologista, diretor executivo do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (Incor-HCFMUSP) e diretor presidente da Fundação Zerbini. É professor-titular da Faculdade de Medicina do ABC, membro do Consenso Brasileiro de Terapêutica Antiretroviral do Ministério da Saúde. Dirigiu a casa da Aids, entre 1994 e 2004, liderando a criação de um modelo no tratamento da doença no Brasil. Desde setembro de 2002, coordena o Programa de Assessoramento Brasil-Angola para o Controle da Aids e Grandes Endemias.