Moradores denunciam mortes de rendidos, torturas e ocultação de provas durante incursão policial nos complexos da Penha e do Alemão
Por Sandra Venancio
Uma operação policial deflagrada nesta terça-feira (28) nos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, terminou em uma das ações mais letais da história recente da cidade. Denúncias de execuções, torturas e impedimento de socorro a feridos foram feitas por moradores, parentes das vítimas e lideranças comunitárias. O número de mortos ainda é incerto, mas relatos locais indicam que ao menos 80 corpos foram resgatados da área de mata conhecida como Pedreira, na Vila Cruzeiro.
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De acordo com os depoimentos, a estratégia policial teria sido cercar a região e impedir a fuga de suspeitos, formando um “muro humano” com agentes do Batalhão de Operações Especiais (Bope). O confronto mais intenso ocorreu na mata que separa as comunidades, onde moradores afirmam que homens rendidos foram executados. “Eles se entregaram, jogaram os fuzis, pediram perdão. Mesmo assim foram mortos”, contou um morador que esteve no Instituto Médico-Legal (IML) para reconhecer o corpo de um parente.

O presidente da Associação de Moradores do Parque Proletário da Penha, Erivelton Vidal Correa, classificou a ação como “genocídio” e denunciou sinais de tortura em dezenas de corpos. “Encontramos muitos com o rosto desfigurado, cortes nas mãos, perfurações de faca, até decapitações. Foi uma carnificina. Em onze anos de atuação aqui, nunca vi nada igual”, afirmou. Segundo ele, moradores improvisaram o resgate das vítimas usando lençóis e toalhas. “Levantamos 80 corpos com as próprias mãos. Se o socorro tivesse chegado antes, talvez alguns estivessem vivos.”
Além de suspeitos, há indícios de que moradores sem envolvimento com o tráfico foram mortos. “Tinha gente que criava cavalo e subiu o morro para buscar capim. Foram atingidos por estarem no lugar errado”, relatou Correa.

O dono de uma agência funerária que há mais de duas décadas atua na região, Fernando Argivaes, também testemunhou o cenário. “O estado dos corpos era horrível. Foi uma chacina. Encontramos pessoas escondidas entre as pedras, executadas à queima-roupa. Isso não foi confronto”, declarou.
Moradores denunciam ainda que a polícia teria impedido o resgate dos feridos e deixado os corpos no local para evitar a produção de provas. “Se levassem para o hospital, ficaria evidente o tipo de ferimento. Era mais conveniente deixar para trás”, disse Correa.
Entre os familiares das vítimas, o desespero se misturava à revolta. Elizângela Silva, vizinha de uma das mães enlutadas, gravou vídeos no momento da operação. “O menino ligou pedindo ajuda, dizia ‘mãe, me ajuda, pelo amor de Deus’. Quando subimos, a polícia atirou contra a gente. De noite, todos estavam mortos”, contou.
Enquanto o IML inicia o processo de reconhecimento e liberação dos corpos, a comunidade cobra investigação independente e responsabilização dos envolvidos. O Ministério Público do Rio de Janeiro informou que vai acompanhar o caso, mas, até o momento, as forças policiais não apresentaram balanço oficial da operação.
O episódio reacende o debate sobre o uso desproporcional da força em favelas e o padrão de letalidade das operações no estado. Para os moradores da Penha, a madrugada de 28 de outubro de 2025 ficará marcada como um massacre – mais uma tragédia na longa história de violência que assola as periferias do Rio de Janeiro.

Massacre na Penha — 88 mortos e suspeitas de execução
O balanço oficial divulgado na noite de quarta-feira (29) pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro confirmou 119 mortos durante a operação conjunta do Bope, Polícia Civil e Polícia Militar nos complexos da Penha e do Alemão. A ação, que durou mais de 18 horas, é agora a mais letal da história do estado, superando as operações de Jacarezinho (2021) e Vila Cruzeiro (2022).
Segundo o laudo preliminar do Instituto Médico-Legal (IML), obtido pela Agência Brasil, a maioria dos corpos apresentava múltiplas perfurações e sinais de execução à curta distância, além de marcas de tortura e cortes nas mãos, possivelmente para dificultar a identificação digital. Dois corpos foram encontrados decapitados, e vários exibiam perfurações no rosto e tórax — ferimentos incompatíveis com confronto direto.
Dos 119 mortos, 57 foram identificados até o início da manhã desta quinta-feira (30). Entre as vítimas estão dois irmãos manauaras, um mototaxista, um adolescente de 17 anos e três moradores da região que não tinham envolvimento com o tráfico, conforme relatos de familiares e registros da Associação de Moradores do Parque Proletário da Penha.
Ainda segundo a perícia, nenhum dos corpos analisados até o momento apresentava resíduos de pólvora nas mãos, o que reforça a hipótese de execução. O documento técnico também aponta que muitos disparos foram feitos “de cima para baixo”, indicando posição de rendição ou imobilização das vítimas.
A Associação de Moradores da Penha contabiliza ainda 26 feridos, dos quais 14 seguem internados no Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Ilha do Governador. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) instaurou procedimento para apurar indícios de crimes de extermínio, ocultação de provas e obstrução de socorro.
Organizações de direitos humanos, como a Defensoria Pública e a Anistia Internacional Brasil, solicitaram proteção a testemunhas e acesso integral aos autos da operação. O governo estadual, por sua vez, defendeu a ação, alegando combate a facções criminosas e apreensão de armamento pesado.
Enquanto isso, na Praça São Lucas, ponto central da comunidade, dezenas de famílias velam seus mortos em tendas improvisadas, em meio a faixas com pedidos de justiça. “Foi uma operação de extermínio. Não há outra palavra para descrever o que fizeram aqui”, resume o presidente da associação, Erivelton Vidal Correa.




