1) O que pode ser considerado patrimônio histórico? Qual o papel efetivo das instituições, como o CONDEPACC, na preservação dos patrimônios?
2) Como o meio ambiente se relaciona na preservação do patrimônio histórico – sobretudo, se considerarmos as paisagens históricas presentes na memória e nos relatos?
3) Nos fragmentos da memória coletiva e, em particular, nos relatos individuais, o meio ambiente é constantemente referenciado. Em muitos casos, a diferenciação do \”antes\” e do \”depois\” é marcada pela ruptura ocasionada pela degradação oriunda do \”progresso\”, da \”indústria\” e da \”urbanização\”.
Em que medida podemos considerar o relato individual como uma fonte ou documento para justificar um processo de tombamento?
Como unir história e meio ambiente?
4) Em Sousas e Joaquim Egídio, existem alguns projetos de preservação e resgate da memória. O Jornal Local contribui divulgando escritos de um \”memorialista\” local (antigo morador da região), além de possuir uma coluna denominada \”Memórias\” em que publica textos relativos à história da região. Qual sua opinião a respeito deste tipo de iniciativa? Quais as repercussões a curto e longo prazo?
5) Qual o papel de um centro de excelência em pesquisa, como a Unicamp, em relação à preservação da história local e do patrimônio?
RESPOSTAS:
1) Edgar Salvadori de Decca Pró-Reitor de Graduação da UNICAMP
Todas as questões colocadas sobre preservação devem ser analisadas em seu devido contexto histórico e cultural. Quero dizer com isso que cada sociedade ou cultura tem o seu desejo e seu programa e sentimento de preservação. Evidentemente, nosso desejo de preservar, em uma cultura marcada pela aceleração tecnológica é muito diferente de uma cultura cujos padrões de tecnologia sejam muito diferentes dos nossos. Apenas para darmos um exemplo muito intrigante. Na época da Revoluções do século 18 e 19, como foi a Revolução Francesa e a Revolução América, havia percepções diferentes quanto à preservação do passado. Por exemplo, durante a Revolução Francesa os relógios foram quebrados, assim como muitos monumentos destruídos. O famoso texto de Karl Marx intitulado O manifesto Comunista, também pregava a superação e a destruição das heranças que históricas impeditivas da modernidade. No afã do progresso, as utopias novencentistas deslumbravam um mundo novo, sem as marcas opressoras do passado. Aliás, tudo o que se referia às tradições deveria ser motivo de crítica e suspeita. Essa foi a atitude responsável pelo desenvolvimento da filosofia e da ciência da história a partir do Iluminismo. Devemso levar em consideração o fato de que o conceito de patrimônio, tal como conhecemos hoje´, surgiu como resposta do Estado nacional frente às utopias de revolução, isto é, como marca importante do pensamento conservador. Essa é a história da formação dos serviços de patrimônio. O Condeppac faz parte dessa história, com a diferença histórica que separa a nossa época do século XIX. Hoje, descobrimos que preservar significa respeitar as diferenças culturais e a diversidade, mas ainda assim existe o elemento estatal de cunho identitário nacional em todos os órgãos oficias de preservação.
A questão do meio ambiente pode ser analisada sobre diversos ângulos históricos. A natureza sempre foi o maior desafio para os preservacionistas. Ela pode ser admitida de forma positiva e de forma negativa. Esse debate também foi intenso no século XIX. Se admitirmos que o tempo da natureza imprime marcas nos artefatos humanos, envelhecendo-os e deteriorando-os(assim como acontece com nossas vidas) devemos deixar que os monumentos e artefatos humanos sofram a ação desse tempo natural. Há outra concepção de preservação que ao contrário, acredita que o valor simbólico do passado deve ser preservado da ação do tempo e deve ser congelado em sua plenitude. A primeira corrente foi defendida pelos românticos ingleses como Ruskin e William Morris, a outra, mais próxima à disneylândia e à cirurgia plástica do passado, foi defendida por Violet Le Duc. Toda vez que observamos a natureza em seu movimento, ali encontraremos as marcas da vida e da morte, num processo cíclico de nascimento e declínio.
O relato individual é frágil, como toda a memória que comporta a oralidade e não se institui como sistema de referência reconhecido para a apreensão do passado. A história se distingue da memória porque ela é reconhecida pela sociedade e por nossa cultura como um sistema de referência simbólica produtor de sentidos do passado. A memória pode conflitar-se com a história porque os sentidos atribuídos ao passado pela história, muitas vezes silencia ou apaga as marcas das memórias coletivas dos grupos. A Unicamp por exemplo, produz história e portanto elabora referência simbólicas do passado reconhecidas institucionalmente e por isso pode ser responsável tanto pela preservação da memória como pela sua destruição e produção do silêncios.
2) Maria Lucia Abaurre Gnerre, Mestre em História Social e Doutoranda pelo programa de Doutorado em História Social da Unicamp. ( luciaabaurre@terra.com.br )
1) O que pode ser considerado patrimônio histórico? Qual o papel efetivo das instituições, como o CONDEPACC, na preservação dos patrimônios?
O conceito de patrimônio histórico deve ser compreendido dentro do próprio conceito de patrimônio cultural, que é um conceito mais amplo, que está presente na própria constituição brasileira. O artigo 216 da Constituição da República Federativa do Brasil, define o conceito de patrimônio cultural a partir de suas formas de expressão; de seus modos de criar, fazer e viver; das criações científicas, artísticas e tecnológicas; das obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e dos conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Assim, na prática o podemos considerar como constitutivos do patrimônio histórico, edificações, espaços públicos ou privados, que são representativos de uma forma de viver, que são expressão de uma cultura,ou da arte de um determinado período.
A Constituição também estabelece que cabe ao poder público, com o apoio da comunidade, a proteção, preservação e gestão do patrimônio histórico e artístico do país. É ai que entra o Condepacc, enquanto órgão do municio, voltado para o cumprimento das determinações da constituição. O Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas foi criado pela LEI Nº 5.885, de 1987, que dispõe sobre a proteção e preservação do patrimônio histórico, artístico, arquitetônico, arqueológico, documental e ambiental do município de Campinas. Cabe ao Condepacc o papel de aplicar e definir uma política municipal de defesa e proteção do patrimônio cultural, realizar estudos para elaboração de recursos institucionais voltados a preservação do patrimônio, e ainda, coordenar e executar as atividades públicas referentes a essa política, podendo ainda este conselho sugerir aos poderes públicos medidas para cumprimento das exigências decorrentes da execução dessa política. Ou seja, o Condepacc é o órgão que define e executa políticas públicas de preservação do patrimônio. É claro que a própria lei também prevê parcerias com o poder privado para a preservação do patrimônio, mas de qualquer forma, o papel deste conselho é absolutamente central neste processo.
2) Como o meio ambiente se relaciona na preservação do patrimônio histórico – sobretudo, se considerarmos as paisagens históricas presentes na memória e nos relatos?
Há hoje uma importante corrente na história que pensa a própria paisagem como um elemento da cultura de um povo. Essa abordagem, se baseia numa concepção importante, a de que a paisagem também é algo que se constitui historicamente, no olhar dos homens, e pode ser estudada através dos relatos de homens que viveram em períodos anteriores. A natureza em si não se observa, nem constitui juízo de valor a seu respeito. Um animal pode ver a natureza que o cerca, mas não vê a si próprio como algo distinto dela, como um ente que a observa. Não se vê como observador do mundo, simplesmente vê o mundo. A paisagem é sempre algo que se constitui no olhar dos homens que observam a natureza. Os homens, além de ver o mundo vêm a si mesmos como observadores do mundo, e ao observarem uma paisagem natural, a observam através dos valores, das lentes de sua cultura. Assim, a paisagem tem sua historicidade, faz parte de uma cultura. Preservar uma paisagem que faz parte da memória de um povo é uma ação de preservação de um patrimônio cultura e ambiental. Na minha concepção, meio ambiente e história em muitos casos constituem uma coisa só.
3) Nos fragmentos da memória coletiva e, em particular, nos relatos individuais, o meio ambiente é constantemente referenciado. Em muitos casos, a diferenciação do \”antes\” e do \”depois\” é marcada pela ruptura ocasionada pela degradação oriunda do \”progresso\”, da \”indústria\” e da \”urbanização\”.
Em que medida podemos considerar o relato individual como uma fonte ou documento para justificar um processo de tombamento?
Como unir história e meio ambiente?
Esta pergunta toca em temas muito importantes Durante muito tempo concebemos a história essencialmente como história dos homens, como estudo das relações sociais ao longo do tempo. Certamente a história trata dessas relações sociais entre os humanos, e das formas como essas relações se expressam (livros, arte, documentos governamentais, etc). Hoje, no entanto, muitos trabalhos têm analisado a história de uma nova perspectiva, incluindo a natureza como chave para compreensão da história, e analisado a história dos homens como parte da natureza que os cerca. A compreensão da forma como os homens percebem a natureza ao seu redor é decisiva para a compreensão da forma como os homens vão interagir com a natureza. Tantoos olhares dos homens sobre a natureza, quanto as formas de interação com ela variam muito ao longo do tempo. O relato individual permite justamente a compreensão das formas de interação com o meio ambiente, de um individuo e de sua cultura. É muito importante, pois mostra a percepção que aquele individuo tem da paisagem, e da história daquela paisagem. É o olhar individual que dá historicidade a paisagem, a medida que integra a paisagem a história de sua vida. A questão da ruptura, do antes e do depois, é justamente como o individuo sente a mudança da paisagem na sua vida. É claro que estamos falando deum processo humano muito amplo, do progresso e do crescimento urbano que implicam numa série de conseqüências que podem ser dramáticas para o meio ambiente, das quais muito se fala, mas há também esta conseqüência na memória, no sentimento que um determinado ser humano tinha da paisagem, antes e depois. Na verdade, as conseqüências ambientais são sempre sentidas pela percepção dos homens que tem um vinculo cultural com aquela paisagem.
4) Em Sousas e Joaquim Egídio, existem alguns projetos de preservação e resgate da memória. O Jornal Local contribui divulgando escritos de um \”memorialista\” local (antigo morador da região), além de possuir uma coluna denominada \”Memórias\” em que publica textos relativos à história da região. Qual sua opinião a respeito deste tipo de iniciativa? Quais as repercussões a curto e longo prazo?
Acho uma iniciativa absolutamente maravilhosa, e certamente as memórias de um morador desta região evocam as memórias de outros moradores antigos, e ao mesmo tempo, ao tomar determinados lugares como referência, acabam evocando as memórias também dos novos moradores. A memória é o centro da própria preservação:quando um lugar faz parte da memória coletiva, torna-se muito mais fácil justificar e defender a sua preservação. A longo prazo, esta coluna pode ser um instrumento importante nas práticas preservacionistas da região. Souzas e Joaquim Egídio, com seus rios e nascentes, com suas fazendas e com o casario dos núcleos urbanos, constituem um patrimônio impar na cidade de Campinas. Eu costumo a caminhar sempre pelas trilhas da região, a observar fazendas ao longo das estradas, e acredito que esta paisagem, e a história de sua constituição, certamente merecem uma ação cada vez mais intensa de preservação.
5) Qual o papel de um centro de excelência em pesquisa, como a Unicamp, em relação à preservação da história local e do patrimônio?
Recentemente, no Jornal da Unicamp, foi divulgada a pesquisa de uma bióloga da Unicamp, que fotografou na mata do ribeirão cachoeira, na região de Souzas, uma série de mamíferos, incluindo uma onça parda. Sem dúvida, a pesquisa dela ajudou na divulgação da existência de um importante patrimônio ambiental na região, que talvez fosse desconhecido até mesmo pelos moradores locais. No mesmo sentido, as pesquisas ligadas a área de patrimônio podem colaborar com a divulgação da existência de importantes patrimônios históricos e culturais, como a Societá Italiana Lavoro e Progresso de Souzas, que agora faz parte de um projeto de iniciação científica desenvolvido no departamento de História da Unicamp. A pesquisa é uma forma constituição e divulgação do conhecimento, e é aí que reside o papel central das universidades. A partir daí, deste processo de constituição de um conhecimento podemos tomar as medidas cabíveis para a preservação do patrimônio.
3) Profa. Maria Lúcia de Souza Rangel Ricci – Pesquisadora do Centro de Memória da UNICAMP
Só pensando em alguma coisinha que me ocorre de momento e que creio poderá ajudar em sua matéria:
· compreender concretamente a cidade é apreender a individualidade dos habitantes, individualidade esta que é a base dos próprios monumentos, ou seja, compreendê-la é para além de seus monumentos, para além da história inscrita em suas pedras, é descobrir a maneira particular de ser de seus moradores;
· o urbanismo e as políticas culturais são fios condutores dos elos -externo-interno e geral – particular que configuram a história de cada lugar;
· a cidade pode ser compreendida como condensação de tempos sociais seletivamente resguardados da destruição. A matéria sustenta, pois, crenças e valores que tendem a se deslocar de qualquer colagem a objetivos específicos, transformando-se em cultura e ideologia;
· como analisou David Harvey a política urbana tende a ser, via de regra, imediatista;
· é inegável a relevância da memória para a ação, ou seja, na emergência de sujeitos sociais na cena pública. A memória compartilhada orienta a socialização;
· a memória social dos lugares torna-se apropriável ampliando as uniões entre política cultural e política urbana; assim, houve alterações consideráveis nas funções sociais da memória;
· não podemos esquecer que a memória é apreensível e permite a reconstituição do que teria sido o passado. É ela e a história que nos redimem… Assim, podemos passar da singularidade da existência para a partilha da vida coletiva. É preciso atentar que à medida que os fluxos se acentuam e se multiplicam na memória é importante considerar na contemporaneidade o que vem acarretando a desestabilização de certezas, a preeminência do transitório e a perda da memória objetiva dos espaços (como bem abordou Huyssen);
· as riquezas naturais são exploradas para a produção de lucro, transformando os elementos naturais em recursos, o que vem gerando catástrofes ambientais;
· se separadas natureza e sociedade perdem seus significados e a história passa a ser interpretada sem a materialidade da ação;
· segundo Milton Santos, a tecnociência surgiu no século XX como paradigma orientador das ações das sociedades sobre o meio ambiente;
· lembrar sempre que a questão ambiental tem caráter eminentemente social. Daí as indagações: como propor intervenção que saia da relação custo e benefício? Qual a condição para se apreender as diferentes compreensões do biológico, do simbólico, etc.?;
· a partir da década dos 1970 se passou a melhor compreender os atores envolvidos com as chamadas questões ambientais, sendo as suas áreas prioritárias as atitudes ambientais, os valores e comportamentos, o movimento ambientalista, o cálculo de riscos da tecnologia e a política ambiental. Os temas mais abordados são as causas dos problemas ambientais e o aumento da consciência ambiental;
· mas também o ambiente, noutro modelo, é visto como espaço de vida (depósito de ofertas e resíduos);
· a percepção pública foi importante para o crescimento do ambientalismo;
· a revitalização da sociologia ambiental está associada ao crescimento das preocupações ambientais da população no início dos anos 1990 (muito deve à escola americana);
· há diferença, pois, nas retóricas dos ambientalistas pragmáticos e ecologistas profundos;
· o movimento ambientalista se caracteriza pela internacionalização, por seu caráter multissetorial;
· creio ser salutar o que o Jornal Local vem divulgado (sobretudo pelo que você me conta, pois, em verdade, só vi um número dele). Sobre a coluna “Memórias” é muito oportuna uma vez que vem registrando do antigo morador o que poderá ser perdido com o tempo, e, se possível, coletar também os relatos dos atuais habitantes que será necessário para o futuro, uma vez que não podemos deixar de registrar e interpretar também o presente;
· o relato individual é significativo para agilizar um processo de tombamento frente à riqueza de dados que poderá ser coletado (se bem selecionado o depoente) e que deverá ser cotejado, analisado, junto a outros documentos.