Pedro J. Bondaczuk
O meu fascínio por Nelson Rodrigues – vida e obra – é irrestrito e ilimitado, a despeito de termos personalidades, idéias e trajetórias rigorosamente distintas, quase diametralmente opostas. Duas coisas fundamentais (que ao fim e ao cabo se resume numa única), contudo, aproximam-nos bastante: nossa paixão por jornalismo e por literatura. Não o conheci pessoalmente. Tive oportunidade para isso, mas minha timidez (e olhem que me destaco pelo atrevimento!) me impediu. Temia sentir-me pequeno demais (e certamente me sentiria) diante do meu ídolo.
Claro que não concordava com tudo o que Nelson escrevia. Aliás, politicamente, minha discordância era praticamente total. Ele, por exemplo, apoiava a ditadura. Eu, posto que sem me expor (por medo, certamente), me opunha a ela. Ele, em suas peças, contos e romances, tratava, via de regra, o amor pelo seu avesso. Eu, da minha parte (e felizmente mudei essa postura) encerrava, invariavelmente, minhas histórias com o clássico “happy end”, em que o mocinho beijava a mocinha e ambos viviam “felizes para sempre”. Mas isso é inverossímil e a vida não é assim. Nelson tinha essa percepção. Passei, há já alguns anos, a tê-la também.
Instado, certa feita, a definir-se, o autor de “Asfalto Selvagem” o fez da seguinte maneira: “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, somente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino)”. E esta autodefinição de Nelson Rodrigues, colou. Tanto que passou a ser chamado, por amigos e eventuais inimigos, dessa forma. Ou seja, de “anjo pornográfico”. Ocorre que a vida, volta e meia, é pornográfica! Mas… Deixa pra lá!
Sua obra teatral é bastante vasta e boa parte foi transposta para o cinema e para a televisão. A Rede Globo apresentou, há alguns anos, a série “A vida como ela é”, baseada em textos ficcionais de Nelson Rodrigues. Mas o que quero tratar hoje não é da sua magnífica dramaturgia, que abordarei, certamente, na sequência, nos próximos dias. O tema que trago para reflexão é o conteúdo da penúltima crônica que escreveu, intitulada “Analfabetos do Amor”, escrita em 19 de dezembro e publicada dia 20 de dezembro de 1980 no jornal Folha de S. Paulo, dois dias antes da sua morte. Falarei, oportunamente, sobre as circunstâncias em que “ficou encantado”, no dizer de Guimarães Rosa.
Nesse memorável texto, que hoje é uma espécie de documento, o dramaturgo e jornalista pernambucano (aliás, recifense), que sem perder sua “pernambucanidade” se tornou o mais carioca dos escritores não cariocas, escreveu, na metade do terceiro parágrafo: “O homem que sabe de tudo, nada sabe do amor. Eu diria, se me permitem, que em amor o homem é tão analfabeto como um pássaro. Ou melhor: o pássaro tem, a seu favor, a vantagem do instinto puro, livre e clarividente. Ao passo que cada um de nós carrega, nas costas, não sei quantos preconceitos, não sei quantos equívocos. Eis a verdade: Falta-nos a espontaneidade de uma cambaxirra. E vou mais longe – o nosso amor é triste”.
Em suma, não sabemos amar. Somos incapazes de pensar nos interesses, na satisfação e no bem-estar da pessoa amada quando estes contrariam, de alguma forma, os nossos. Amamos o amor não a pretensa amada. Somos egoístas nesta matéria. Queremos ser sempre (e buscamos a todo o custo nos tornar) o centro do relacionamento. Tudo tem que girar em função de nós. Não cultivamos esse sentimento, não evitamos pequenas e tolas rusgas, não cuidamos da língua e do quanto ela pode ser ferina e ofensiva e, sem nos darmos conta, pouco a pouco, vamos matando esse sentimento. Não em nosso íntimo talvez (embora isso também possa ocorrer), mas sufocando a reciprocidade, até que não reste mais nada. E então…
Nelson Rodrigues ressalta, na citada crônica: “Essa tristeza, inerente ao sentimento amoroso, decorre de que não sabemos amar. O homem mais sensível e lúcido é, diante do ser amado, um incerto ou, pior do que isso, um inepto. Ele não sabe o que dizer, o que fazer, o que pensar. O que nós chamamos “romance” é a soma de erros, de equívocos engraçadíssimos. Vejam – não encontramos a palavra justa, exata, perfeita, não nos ocorre o galanteio que o ser amado desejaria escutar”.
Nelson Rodrigues descobriu, por experiência própria, esse nosso “analfabetismo amoroso”, que foi por muito tempo também o seu. Mas se redimiu no fim da vida. Muitos (a maioria) não se redimem nunca. E como se deu sua redenção? Não somente escrevendo textos maravilhosos e verdadeiros sobre o amor (como este, citado), mas reconciliando-se a tempo com Elza, mulher da sua vida, com quem havia rompido para manter tumultuado relacionamento com Lúcia Cruz Lima e um rápido casamento com sua secretária Helena Maria.
Reconciliado, o casal entendeu que um havia sido feito para o outro, apesar de tudo o que havia acontecido de errado e de ruim, que os levou à separação. Dois meses após a morte de Nelson, Elza atendeu a um pedido que este havia lhe feito como não quer nada. Ou seja, de ainda em vida, ela gravar seu nome, ao lado do dele, na lápide de seu túmulo, tendo acima a inscrição: “Unidos para além da vida e da morte. E é só”. Um personagem tão marcante, e um assunto de tamanha relevância, merecem, sem dúvida, maior e melhor abordagem. Voltarei ao tema.